quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O vagar no Rio

Sob a luz clara do lampião, perambulava pela orla de Copacabana. A lua já era anúncio, enquanto o Sol morria fatigado no poente além.
Um casalsinho namorava no vai-e-vem das ondas e meu peito ardeu na lembrança etérea da tua carne. Longe, tão disto está o meu amor. Em alguma terra vês a Estrela Dalva, que um dia chamamos de nossa "estrela".
Ainda na praia o rapaz acariciava a face pura da donzela, seus lábios macios tocavam-lhe a nuca. E senti no vento que passava, a sua ausência, em mim a maior presença. Creio que ainda me tens, seus olhos ainda brilham por mim.
Pego um ônibus qualquer, chego na Lapa e os arcos trazem à tona suas curvas e seus seios fartos de paixão divina. Chego a iludir-me ao ver tua face em todas as faces e meus olhos choram finas lágrimas.
Ando a esmo, bobo, louco. Paro num bar, e as noites no Beco das Garrafas renascem na voz quente de Dolores que saía de um rádio antigo. Aguardo a volta, na eterna noite, meus pelos eriçam no leve pronunciar do teu nome. Vem que meu corpo é ara de sacrifícios e meu sorriso estrela da manhã.
O Sol já clareia e nada me acalma, sem as suas mãos, sem teu calor, toda poesia vem embutida com um sofrido mal-estar de morte. Talvez de vida, só preciso que retornes.


Caio A. Leite - 17/09/10

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Poesia: Morte de Clarice Lispector

Eis aqui um curto porém singelo e emocionado poema feito por Ferreira Gullar na ocasião da morte da escritora Clarice Lispector em 1977.

"Enquanto te enterravam no cemitério judeu
do Caju
(e o clarão de teu olhar soterrado
resistindo ainda)
o táxi corria comigo à borda da Lagoa
na direção de Botafogo
as pedras e as nuvens e as árvores
no vento
mostravam alegremente
que não dependem de nós "


Ferreira Gullar

A fonte do colibri

Num cantinho de mato, no remoto presente de um lugarejo quase sem progresso, nascia uma fonte em que todos os dias três pequenas aves iam bebericar a água límpida.
Uma era um canário da terra, amarelo vivo, refletindo em sua tonalidade toda vivacidade da mata. Outra um sanhaço, no seu azul metálico era um pedacinho de céu aos olhos de quem via. Por fim havia um cuitelinho quase cinza, com listras verdes, nada muito especial.
Os dois primeiros quando surgiam do manto espesso de folhas e galhos, traziam a si todos os olhares, as águas paravam, os insetos pousavam e as flores se abriam. Só que o cuitelo passava despercebido, era o que pensava.
Em um dia de Maio, cansado de tanta desatenção, o pequenino não voou para refrescar-se na fonte. Então os seres arredor ao notar sua ausência não sorriram como sempre. Ali do meu lugar privilegiado entendi que sem o ligeiro bater de asas do cuitelo, a beleza dos outros dois estava desfalcada.
Voltei para casa, não mais fugindo e nem escondendo minha beleza que completava os que viviam ao meu lado, e que precisavam de mim. Assim como a fonte precisava do diminuto colibri na sua intocada e essencial imagem de ave-pintura.


28/09/2010 - Caio A. Leite

terça-feira, 28 de setembro de 2010

O carro na noite

Vinha da janela entreaberta do escritório um vento que pronunciava tempestade, a brisa enregelou meu corpo num arrepio involuntário. Levantei-me para trancar a vidraça, da mesma podia observar a rua e o negrume da noite avançada. Apenas uma luz de lampião com alguns insetos de calor me diziam que havia vida naquela escuridão.
Um trovão, e um carro cruzou a rua em disparada em uma curva perigosa que traçou, as marcas dos pneus ficaram marcadas no asfalto. Rodou uma, duas, três vezes e meia e bateu com violência no portão da casa em frente. Num solavanco meu coração me impulsionou ao telefone pronto pra discar a emergência.
Mas algo dentro em mim paralisou meus músculos. De dentro do carro saiu um homem alto e uma jovem ruiva num mini-vestido carmim, sua pequena bolsa barata cintilando aos faróis traseiros do carro enquanto fechava o porta-malas que abrira na colisão.
Luzes se acenderam no domicílio do acidente, o rapaz disse algo para a moça, que rapidamente correu para um beco próximo. Ele também tratou de desaparecer (provavelmente marcaram um lugar de reencontro).
Ouviu-se o grito de uma sirene indo e vindo no vermelho-azul-vermelho sem fim. Parou em frente a casa, aproximou-se da senhora de robe que por fim chegara aos portões devido a lentidão da idade.
O guarda conversou por breves dois minutos, ligou uma lanterna e anotou o número da placa. Ligou a viatura a partiu em busca das duas personagens da cena que presenciei da alta janela de minha humilde casa. Fiquei imaginando o que haviam feito para atrair os homens da lei. Mil pensamentos passando por minha mente criativa, enquanto colocava o telefone que ficara o tempo todo em meus punhos por uma ambulância que não veio. Voltei aos meus afazeres e a chuva precipitou-se, como se tivesse espiando toda cena como eu, para depois desabar.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Noite de paz

Estava acabando Outubro, mais uma vez na boatezinha carioca. Fumava um cigarro distraído o copo de uísque pela metade. Alguns cochichos apressados denunciavam um começo de impaciêcia. Onde estará a cantora e seus enormes olhos?
Já começava a batucar os pés também num gesto incosciente de nervosismo. Porém das coxias vagarosamente surgia Maysa com um semblante diferente.
Aproximou-se do microfone, tocou-o de leve. O olhar para o chão amadeirado. Sua boca abriu-se e a língua moldou as cordas vocais num melodiar melancólico.
Rogava por uma tal noite de paz*, lentamente ela acabava seu teatro, enquanto uma lágrima fina rolava misturada de maquiagem, parando próxima a sua boca vermelha. Ela limpou cuidadosamente e me olhou. Seu olhar me atingiu em cheio então compreendi.
Entendi que não iria ao show dela hoje, não iria amanhã, não iria jamais, sua voz calou-se. Dolores havia partido.


Caio A. Leite 26/09/2010

* A música: Maysa - Noite de paz