sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Atitude

Não há mais tempo de querer,
de fingir. De somar, de ler poesia.
Ou me ama ou cai fora.
Não tenho paciência pra esperar.
Abra a boca, se titubear por
um momento eu bato a porta
na tua cara. Peço uma pizza
e por mim está tudo bem.
Cansei de complicar.

Caio A. Leite 25/2/2011

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O destino de Marisa

Promíscua Rosa. De quase cor anil,
seu vestido de cetim vadio.
Quem sabe dela são as ruas.
Andarilha dos passados,
de novos romances, todos casados.

Figurante Rosa das festinhas
dos senhores, passando à margem.
Ficando isolada na foto como uma
moldura, afinal uma miragem.

Fatal Rosa, espinhos a flor da pele.
Boca de hera, cabelos de fogo
no Cerrado. Flor do alagado bairro
Pantanal. Rosa das avenidas, do
mural.

Sorte poder ser Rosa, como uma
dama-da-noite que sob a luz da lua
se torna outra, só é Rosa nas
madrugadas. Depois vira Marisa.

Jamais quis ser Rosa. Mas assim
como a flor real que nasce sem
saber do seu destino, Marisa é
Rosa pois nascestes para o ser.
E disso ninguém duvida.

Caio A. Leite - 24/02/2011

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Direto do trem azul

"Agora o braço não é mais o braço erguido num grito de gol. Agora o braço é uma linha, um traço, um rastro espelhado e brilhante. E todas as figuras são assim: desenhos de luz, agrupamento de pontos de partículas, um quadro de impulsos, um processamento de sinais. E assim – dizem – recontam a vida. Agora retiram de mim a cobertura de carne, escorrem todo o sangue, afinam os ossos em fios luminosos e aí estou, pelo salão, pelas casas, pelas cidades, parecida comigo. Um rascunho. Uma forma nebulosa, feita de luz e sombra. Como uma estrela. Agora eu sou uma estrela"

Fernando Faro in "O trem azul - Elis Regina" - 1982

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Felicidade Clandestina - Clarice Lispector

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria. Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade". Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia. Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu nao vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam. No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez. Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte"com ela ia se repetir com meu coração batendo. E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra. Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. As vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados. Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler! E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer. Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo. Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada. As vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Susto

O melhor é o sorriso,
que não existiu.
O melhor é o amor,
que não floriu.

A única perda
é a da voz.
A única pedra
entre nós.

A maior alegria
a que virá.
O maior susto
é te encontrar.

Caio A. Leite - 17/2/2011

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

A morte do anjo

Abri a porta da frente, tudo parecia normal. Mas alguma coisa dentro de mim fazia-me tremer. Como a premonição de um mal maior que viria a qualquer momento. Olhei para os lados instintivamente e nada me indicava o motivo dos calafrios que permeavam meu corpo com tanto vigor. Balancei a cabeça num gesto de despreocupação, como se abanasse para longe os pressentimentos ruins. Faria como toda manhã, caminharia pelo quarteirão, iria à praça e voltaria
Assim o fiz, sentia-me melhor. Agora estava sereno. O mal estar de antes era irrecordável, e de longe avistava a pracinha que tanto gostava. Onde havia (ou pelo menos deveria haver) bancos, árvores, e um anjo altivo portando uma espada de proteção divina. Mas não foi a paz de sempre que encontrei, algumas pessoas se aglomeravam em torno da estátua de bronze. Alguns flashes, crianças curiosas, velhinhas espantadas. Algo acontecera, e os espasmos atingiam novamente meus braços, minhas pernas, meu ser.
O anjo fora desmitificado, toda sua glória perene de salvação fora desmantelada. Suas asas estavam tortas, seu nariz quebrado, pichações na base hexagonal. E o mais importante e incrível, sua espada fora roubada. Fora o anjo despojado de sua arma contra o Apocalipse, fora o anjo rebaixado a apenas uma estátua de bronze saqueada. Chocou-me de tal forma que as lágrimas caíam sem pudor pelo meu rosto. Era como a morte de uma mãe, a prisão de um irmão ou a ida de um filho. Dor envolta de revolta, com toda aquela pureza que agora fora desvirginada tão abruptamente.
Lembrava-me como era o anjinho fiel, com sua pose eterna de escultura. Dos turistas que infinitas vezes paravam ao seu lado para recordar a visita num retrato. Das beatas que oravam na suprema fé que permitia que a luz minasse por entre o pecado. Passavam as memórias em preto e branco, pois era passado sem volta. Era a marca aberta e pulsante da violência que se esparramava por entre as ruas.
E ainda que o mandassem para o reparo, nada traria a vida ao anjo que antes fora. Como o hímen que não se repõe após o estupro da virgem raptada. Aquela paz morria ali e nem mesmo Deus poderia repô-la. Sem perceber havia dado uma volta inteira na praça. As pessoas já estavam indo embora do local do crime, eu faria o mesmo.
O caminho pra casa foi mais rápido que o normal. Aquela impunidade toda me perturbava. A violência intangível que profanava até estátuas de representações divinas. Parei na frente de casa, para pegar as chaves. Nesse momento nem o fato de meus bolsos estarem vazios me surpreendeu. Era natural que acabasse o meu sossego, pois a estátua do anjo havia morrido.


Caio A. Leite - 17/02/2010

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Aquela Senhora

Levantou-se antes da empregada chegar. Com a mão enrugada, as unhas pintadas de vermelho e a velha aliança no dedo. Abriu a cortina de seda. Ainda era madrugada e a escuridão só não era completa devido aos postes de iluminação e aos furtivos raios de sol que começavam a surgir do horizonte além. Ficou um bom tempo mirando o nada, que era sua companhia nesses momentos. Que era essência natural da vida pouca que soprava agora em seu peito.
Desviou o olhar, admirava a praia. A praia que não era mais praia. Que não era mais a praia que era sua. Era outra. Uma nova que construíram com asfalto, com bancos, com cinza. Jamais veria novamente aquela areia refulgir no sol, como fazia nos tempos de mocidade. Jamais o céu se abriria num azul miosótis, a poluição não deixava e até o mar parecia mais bravio em comparação com aquele manso gigante de águas macias.
Perdia-se cada vez mais em tentar reconstruir aquele passado, como se pudesse trazer os filhos, a mãe e o marido. Aquele que se eternizara pra sempre na aliança dourada que agora era parte simbiótica de seu dedo envelhecido. Uma memória duradoura e infeliz dos quarenta e nove anos de casamento que iriam completar. Um sopro de vida, um sopro de adeus. Infarto, e dormia agora o seu Sebastião num jazigo no cemitério do Caju.
Da mãe guardava as jóias de ametista, de rubi e diamante. Do pai a presilha da primeira comunhão incrustada de brilhantes e a caixa de charutos cubanos. Dos três ingratos filhos, guardou as fotos. Guardou os álbuns dos batizados, as roupinhas. Guardou um afeto de mãe que não se apaga. Chama viva, amor que dói, que atrapalha o amor da criação.
Virou-se num movimento de impaciência, contemplava agora seu apartamento no décimo terceiro andar de um prédio antigo do bairro de Copa. Tudo ali conservava a mesma imagem de ontem e de antes de ontem e de cinqüenta anos atrás. Tocou de leve a mobília de mogno gasto, a textura permanente era como um toque de boas vindas. De lascívia, toque de desejo eterno. As cores desbotadas, o papel de parede descolava-se, o tapete tinha alguns vestígios de traças. Precisava mandar ao conserto. “As coisas precisam permanecer intactas” murmurava para si como um mantra oculto. Acreditava que deixando as coisas assim, pudesse impedir a morte, pudesse trazer o que já se foi. Para que quando voltassem trouxessem a alegria de rever tudo como havia sido deixado.
Nada mudava de lugar. E com esse pensamento triunfante de vencer o tempo, caminhou esvoaçante pelo apartamento com uma pétala de dama da noite. A perfumar o local com sua alegria de furta-tempo. Porém houve um erro de cálculo. Bateu com as ancas na mesinha que mantinha as porcelanas de vovó. Um olhar de quase morte, o estampido do estilhaço. E a pequena xícara morria no chão ao alvorecer impertinente que adentrava a janela. “Está tudo acabado” – pensou – “Tanto cuidado, tanto zelo e agora o encanto se quebrou”.
Ouviu a maçaneta da porta girando, esperou ver Cida sua empregada por toda a vida. Mas ao invés disso outra moça adentrava sua morada. “Sou Sandra. Cida não pode vir, está muito doente coitada, me pediu para vir no lugar dela.” Era o início do fim, a vinda de uma estranha confirmava a passagem de tempo que agora se abatia sobre ela. Suas rugas pareciam mais evidentes. E tudo girava, girava, girava. Caiu no tapete em crise, um susto. Uma pancada. A morte. Foi enterrada às 11h30min ao lado do marido.
Invadiram seu apartamento, venderam seus móveis para um antiquário, penhoraram sua aliança. Doaram seus vestidos. Reformaram o local e o venderam para um casal de noivos. O feitiço passara, e agora juntos um casalzinho sem graça admirava o pôr-do-sol. Na praia que era deles, no apartamento que era deles. No tempo que era deles. Para Dona Beatriz apenas uma lembrança. Sem história, sem porcelana e sem cortinas. A noite chega, para toda flor do campo.

Caio A. Leite - 04/02/2011