quinta-feira, 29 de novembro de 2012

O amor


Como prometido, vou falar de cebolas. Não é que encontrei uma humanidade nesses vegetais? Estava cortando algumas para colocar nos bifes e como sempre chorei. Mas dessa vez eu entendia o choro de outra maneira. Sabe quando você convive tantos anos com uma coisa e não percebe, de fato, como ela é? Pois foi isso o que me aconteceu. Depois de anos chorando sobre cebolas que eu consegui tirar algum proveito e aprendizado disso. As cebolas tinham essa pureza impossível, que tão lastimosa, me fazia chorar quando as cortava. Eu estava depredando o que havia de mais puro no mundo. Estava fazendo em fatias o próprio amor de Deus, que ao criar as cebolas deu a elas essa sabedoria de se envolver em milhares de camadas para não revelar o núcleo fundamental da vida. Mas quando eu, mão agressiva, resolvia despetalar esse segredo, caía em lágrimas. Chorava, pois encontrava o Amor. Mas não o encontrava mais pulsante e renovador. Quando eu abro uma cebola, com faca afiada, quando eu estraçalho esse legume ou raiz, ou sei lá a que gênero pertença (nunca fui bom em botânica), é que me encontro com o mais cruel de mim mesmo. E isso me assusta. Pois eu, na ânsia de descobrir o ponto máximo da existência. O grão da felicidade, por precisar tanto encontrar esse dom escondido eu acabava o destruindo. Eu assassinava o bem inocente. Eu tinha uma garra afiada, garras de águia, mão de facínora. Não saberia nunca acariciar o que era feito de beleza sem machucar. Porque eu era feio, era feio não no sentido estético grego da coisa, eu era feio na alma. Na verdade eu me tornava feio cada vez que abria uma cebola. E as fritava, e as comia. Comer as cebolas era a pior parte do crime. O contato dela com meus dentes ferozes fazia um barulho de trituração que me era impossível de aturar. Nesse momento eu chorava mais do que quando as retalhava. Pois o barulho era a prova final da minha animalidade. Não animalidade dos bichos, porque esses são sagrados e feitos de material quente. Vindos diretamente do forno da Criação. Não, era uma animalidade própria dos humanos. Bestialidade, se preferir.  O fato é que estava acabando com as cebolas de uma vez e elas não tiveram chance de se proteger. Elas apenas existiam com esse grande amor que, por puro ato de burrice, resolveram mostrar a mim. E eu não sabia lidar com tamanha grandeza. No fim do jantar eu estava sozinho e ponderava, olhando meu passado, a quantidade de cebolas que eu já tinha mastigado. 

- Caio Augusto Leite 

domingo, 11 de novembro de 2012

Fome-forma


Escrevo pra não perder a forma,
pra perder a fome.
Mas como como
fico com mais forma,
gordurinhas versificadas.

E a forma me deforma.
Sem reforma,
minha casa
tá um caco.

E sem você
meu coração
tá um caos.
Escrevo pra
dizer adeus.

Mas também pra manter perto,
escrevo pra não morrer.

E só sei morrer escrevendo.

Escrevo pra encontrar a forma.

Mas só tenho a palavra de caminho,
daí me foge a libidinosa, escorregadia, lagartixa,
quimera deslizada, a impossível

Forma.

 - Caio Augusto Leite

Time


Que é o presente
senão uma ausência de futuro
e um acúmulo de passado?

- Caio Augusto Leite

Nada ficou lugar


Passará a sazão das rosas
e a sezão amarela.
Como passará todo o azul
e todo o verde sobre a terra.

Até o universo
se prepara
para o não existir.

Quando digo que te amo
estou já apodrecendo.

E quando digo
que estou indo,

já passou o verde,

e sem saber
estou partindo.

- Caio Augusto Leite

Raiar de aurora


Agora daremos as mãos
e nos encontraremos
no local de sempre.

Levaremos pás
e blusas pretas.

Abriremos uma cova
bem funda
e clocaremos
o que não nos pertence mais.

E por mais que grite,
ali sufocado,
não olharei pra trás.

É que tem um sol tão bonito nascendo,
deve ser amor, ou pelo menos paz.

- Caio Augusto Leite

Teorema


O amor só tem 100%
de rendimento na teoria.

O tédio come 5%,
a distância uns 10.

A insegurança uns 20.
As responsabilidades
mais 30.

30 perco em
medos.

E só restam 5
pra te amar.

- Caio Augusto Leite

Enquanto não te esqueço


Agora ouvirei as músicas
que você não gostava.
"Me deixas louca"
da Elis.

E quem sabe,
quando o coração estiver remendado
eu posso ouvir sem suspiro ou ai

a boa e velha, a nossa,
"Chet Baker - My funny valentine".

- Caio Augusto Leite

Amor prosaico


O nosso amor durou um corte de cabelo.

- Caio Augusto Leite

Quando fui escrito


Clarice me escreveu
e jogou fora.
Caí na terra
e brotei poeta.

Caberia melhor num conto,
espantado com aves,
ovos,
rosas.

Clarice me pariu
e não me cuidou.

Agora preciso viver
num mundo cheio de Adeus.

Onde Deus não pode me ajudar,
pois sou só linhas falidas
de uma grande escritora
que desistiu de me terminar.

- Caio Augusto Leite

Agora chovo


Agora eu quero amar
como não amei outrora.
Quero rimar novos braços
nos meus, sem demora.

O amor não acaba,
vira nuvem.
E chove longe daqui.

Ai de mim, que sou só tempestade
em copo d'água.

A vida é um exagero
e o amor, sem exceções,
será sempre desespero.

Lembrará de mim,
daqui uns cem anos?

Lembrará de nós?

Triste destino dos que amam
mas chovem.

Caem
feito
gotas
nesse
chão
escorrem
e ficam

sós.

- Caio Augusto Leite

Fim de amor


Os poetas não têm tempo
para sofrer de amor.
E nem de buscar
lágrimas dentro de versos.

O tempo é curto,
oh sim,
é preciso viver.

Enquanto partes,
eu me reparto
em novo parto
e renasço novo.

Meu coração é novo
e está pronto
para amar
o que não cabia
em você.

- Caio Augusto Leite

Florindo


É tempo de não buscar as flores,
já arranharam demais com espinhos.
Quem sabe eu faça saudade
e elas brotem novamente
em algum campo,
no coração,
nas íris.

Não colocarei elas em copos
com água gelada,
já gelei demais
os sentimentos.

Deixarei que venham a mim,
essa beleza maior,
que brotem aqui.

Ramos pelos cabelos,
ouvidos,
peitoral
e pés.

Eu coberto de flores,
que eu não precise nunca mais
caçar amores.

- Caio Augusto Leite

O que eu não mais sei


Não sei
se te amo ainda,
ou se me amas
ou se amo quem não é você
ou você ama quem não sou.

Não sei
quantos anos se passaram,
quanto te esperei?

Quanto perdi
aqui parado
querendo o que não veio.

Não sei se somos felizes.

Olho pro lado e tantos casais
vivendo nessa base do não sei.

Talvez eu precise ir embora,
para que sintas minha falta
e voltes e me ames
e tenhamos filhos
e morramos velhos,
não sei.

- Caio Augusto Leite

O que restou das rosas?


Agora o que direi às rosas,
se elas foram embora
levando o aroma,
a doçura,
e as boas cores
que tanto preciso?

Míticas rosas,
rosas de todo dia,
como não as notei
se permaneciam
belas no quintal?

Murcharam e eu fiquei
com o gosto daquelas palavras
que não reguei.

Sequei o coração,
mais murcho que rosas
lá fora.

O que fazer com a vontade
de colhê-las se também já foste embora?

Se não tenho a ti,
já nem me servem rosas,
e da vida, que resta agora?

- Caio Augusto Leite

Em face dos futuros acontecimentos


Rezo para que o mundo acabe
e que eu esteja do seu lado.

Que nossas poeiras se encontrem
e permaneçam vagantes pelo universo.

Trocando partículas
numa eterna cópula.

Ósculos eternos,
gozaríamos nas nebulosas.

E não sofreríamos,
meu bem.

Rezo para que acabe já,
e que acabe essa saudade.

Que esse amor
não suporta o mundo
como é.

Dentro dele sou sujeito
não sendo.

E o futuro parece tão maior
nesse universo infinito caótico
e cheio de imortalidade.

- Caio Augusto Leite

Noite de eclipse


Havia aqui, no bairro,
um cão e uma cadela.
Ontem o cão morreu
e ela ficou serena
e viúva, com a memória triste
do que sempre fora dela.

As estrelas precisam subir,
é a ordem natural dos relógios.
Mas como não indagar a falta,
como colocar o nome de entes queridos
em grandes necrológios?

A vida se espanta,
tão severa
e sedosa.

Baile de máscaras.

Quando damos por nós,
a música parou,
a festa acabou
e na rua as sobras
da fantasia que usávamos

e que lavadas de chuva,
nos trazem de volta
a imagem do barro criado.

Dentro da memória
somos belos e cheios de defeitos.

Sem a vida
a distância aumenta
mas torna os laços
- tão roídos -
novamente estreitos.

- Caio Augusto Leite

Sem horizonte


Amar,
verbo longevo.
Tanto exite,
mas não vejo.

Mas vive lá,
onde não alcanço.
Fica na barra das
coisas que almejo.

Amar,
verbo sem sujeito.
Pelo menos não
sou eu o agente
nem o objeto.

É como olhar pra lua,
mas não vê-la, mas não ter estrelas,
pois me impede a vida,
me impede o teto.

- Caio Augusto Leite

Quando real


Quando escrevi um texto realista,
no outro dia já era abstração.
Como muda o tempo,
a realidade não tem coração.

Ontem quando escrevi aqueles
versos tão loucos de hospício
e roupa branca, pensava que fugia.

Mas hoje abri a janela
e lá estavam as imagens que pintei.
Gaivotas em chamas, meninos de terno.

És louca, Maria?

A realidade não me perdoa
e nem me deixa na poesia.
Tudo que escrevo se despede,
vira arquivo morto,
pão de ontem na padaria.

- Caio Augusto Leite

Criação


Um oco
tão profundo
que poderia
me atirar nesse poço
e nunca tocar seu fundo.

Um nada
tão completamente
que se me dessem
milhares de reais
não compraria
nem um sabonete.

O que fazer depois
que se acaba?

Começar de novo?

Entre um poema,
entre um livro,
entre um verso
e outro eu sou só esse oco.

- Caio Augusto Leite

Ter não tendo


Meu poema é floema
ou qualquer coisa que rime,
não tema,
não tem trema.

Nem trema,
nem fuja do laço,
do grande abraço
que te ofereço.

Se te escrevo uma carta,
são só notícias que passam.

Se te escrevo esse poema
é pra durar.
É pra ler quando tudo
o que for novo envelhecer.

Pra quando ficar com vontade de mim.

Essa que é a forma mais fácil do impossível de me ter,
que não me tem, mas tem.

- Caio Augusto Leite

Reunião


E não é porque te amo
que os outros viraram pó.
Apenas foram sufocados
pela sua presença.

Mas debaixo dos teus afetos,
beijos e promessas
eles habitam
feito matéria decomposta
há milhões de anos.

E basta você sair de cima,
largar de mão,
fazer saudades
que tudo o que dormia
jorrará petróleo.

Negro amor,
marcado,
sangrado,
feito para queimar
e ser queimado.

Reunidos em mim
de mãos dadas.
Fazendo ciranda,
em minh'alma.

Um vem, outro vai.
E no fim me fica
o vácuo de ser nada.

- Caio Augusto Leite

Responsável


Invejo a liberdade
das aves,
das folhas,
das coisas
que podem ir
sem se preocupar em voltar.

Quem dera errar o mundo,
girar por aí.
Sem hora,
sem automóvel,
sem lembranças.

Mas nasci pra ficar,
pra ter saudade,
pra morrer em noite fria.

Pra viver colorindo desenhos
que se apagam, sem dó,
no fim do dia.

E amanhã recomeço..

- Caio Augusto Leite

Ócio-vida


Olha só,
se eu não fosse nada
eu poderia ser tanta coisa.

- Caio Augusto Leite

Câmera e luz


Quero seu olhar panorama.
Seu olhar focado,
deslocado,
seu olhar
de foto.

Um fato é seguro,
teus flashs
me revelam.

E viver sem ti,
é puro negativo,
eu juro.

- Caio Augusto Leite

No primeiro de novembro


Morrerei nesta quinta feira
só para não sofrer
a tua ausência
tão martelada.

Morrerei na véspera,
comemorarei no dia
e ressuscitarei
depois de três
com imensa alegria.

Renovarei meus hábitos,
compararei pratos,
garfos,
toalhas de banho.

E olha só como serei feliz
depois de morrer e voltar.
Só quem atravessa as glebas
noturnas do inferno,

pode cantar,
pode viver,
pode luzir
como sempre quis.

- Caio Augusto Leite

Pessimismo


Só veio para que
eu pudesse perdê-la.

Não tem segredo.

A felicidade existe
para não tê-la.

- Caio Augusto Leite

Nuclear


Sou um bicho simples
feito de amor
e ciúmes.

- Caio Augusto Leite

Paulistriste


Pois temos mais carros
do que ruas.
Mais amores do que flores
para mandarmos.

Mais garoas,
tempestades
que guarda-chuvas
na cidade.

Pois temos essa necessidade
de sermos mais,
de termos mais.

Enquanto não vencermos
não seremos São Paulo.

Enquanto formos essa vila
cheia de conservadorismos
não passaremos de um rascunho
do que nos fora planejado.

- Caio Augusto Leite

Tanto


Quanto mais vivo
mais me apego.
Quando é ti aqui
nada mais vejo.

Não sei mais
ficar em paz.
O amor é só
desassossego.

- Caio Augusto Leite

Tão efêmero


Você vem,
logo vai.
Você é,
você quem?

Fica tão pouco,
some tão já,
que já já
será ninguém.

- Caio Augusto Leite

O iludido


Beijo tua boca
de coral.
Caralho,
boca de vidro
cacos de beijo
cacos de coração.

Tem tanto amor no que dizes,
mas não.
É arame farpado, arapuca, armadilha.

Me prendi,
me perdi,
agora sangro pela boca,
pelos becos,
sem querer nova paixão.

- Caio Augusto Leite

Por que tão longe?


Prezo a saudade,
preso à saudade.
Que saúde tenho
se só penso em ti?

Se a rima ri,
da cinza realidade,
sem nenhuma sanidade?

- Caio Augusto Leite

Poemas


Não se acaba
um livro
de poesia:
recomeça-se.

- Caio Augusto Leite

Beber


A felicidade não cabe
nesses outros novos dias.
Só vive um pouco e morre,
é expansão demais
pra essa nossa vida
tão quadrada.

Beba a felicidade
antes que evapore.

Vai saber quando ela volta,
talvez demore.

- Caio Augusto Leite

Poeminha da ausência


Sem ti,
ó amor,
em que se ocuparão
as minhas mãos?

- Caio Augusto Leite

Censura


Há poemas impublicáveis,
pois te citam
e citam pessoas que não suporto.

Poemas que falam de sexo
com muita explicitez
ou que criticam o governo.

Poemas que rimam,
poemas livres,
poemas de paz,
de guerra, de loucos.

Poemas que trazem as lembranças mais afáveis,
dos dias, das noites, das tardes que não temos mais.
Ah! Todos os poemas são impublicáveis.

- Caio Augusto Leite

Teu beijo de noite


Enquanto uns brigam pela felicidade,
eu repouso na espera dela
que suavemente pousa
e fica, fica pois gosta da minha paz.

E se um dia ela vai embora,
a alma não magoa.
Qualquer dia, numa rua deserta,
a borboleta oscular
efemeramente me desmonta.

- Caio Augusto Leite

Lapa


Meu coração se enche de pus
só quando cruza a Tibério
com a Guaicurus.

É que aqui é longe da Sé,
e os poemas que nascem,
caminham a pé.

E as rimas são pobres,
e não emocionam o mundo.

Tento pegar, mas me escapa.
Não tenho canções por fazer.
Que me importa a Ipiranga,
o que eu vejo é a Lapa.

- Caio Augusto Leite

Sótão


Tão só.
No sótão.
Tão eu.
Então saio e nada.
Volto ao pó,
volto ao só,
do sótão.

- Caio Augusto Leite

Desachando


E é por te perder cotidianamente
que mais foco tenho nas vitrines,
como se você pudesse estar ali,
ou lá, ou cá, em qualquer lugar.

Se é tão fácil perder-te,
por que o avesso
não é de mesma sorte?

E quando eu me distraio da busca
e viro na rua errada,
ai que susto me dá - pular de coração -
é você ali, novamente.

Será você, ou eu
que sumo demais?

Quando amamos perdemos a dimensão
do que é achar,
do que é perder,
do que é pra sempre.

- Caio Augusto Leite

Ganhar um livro


Ganhei um livro.
Ganhei essas palavras
que há milênios foram ditas.
Mas ainda interditadas,
isoladas por faixas de segurança,
não chegarão nunca ao morto,
ao morto, ao morto, ao morto.

Ganhei um livro usado,
nenhum abalo.
Ganhei as lágrimas,
os tremores
e as angústias
que se debruçaram por essas páginas.

E como faz bem pro coração
ter essas histórias
- deveras bonitas e bem escritas -
mas o bom mesmo é ter aqui
esse pedaço, vivo, do João.

- Caio Augusto Leite

Sereno e sozinho


Vai, pode ir.
É inútil te seguir,
pois se sempre fui tua Eurídice
nunca na vida foste meu Orfeu.

E não olhará pra trás
para experimentar o inferno
que existe nessa coisa,
nesse impossível caminho.

Cansei de ser teu estorninho.

Vai, é assim e é preciso.
Quanto mais anda,
menos te sigo
e pode ser que alguém olhe pra trás
e queira arder, nesses quintos,
aqui comigo.

- Caio Augusto Leite

O que dizes


Porque não dizes "Eu te amo"
me amas menos
ou permanece o amor
pois ainda está no irreal
das possibilidades linguísticas?

Ama, não diz. Finge que não sabe.
Finjo que não, não digo.
E vamos amando pois não formulamos.

Pois apenas somos.
E a palavra não pode.
E nós somos, pois não somos feitos de gramática.

- Caio Augusto Leite

Enxergar


Paro e te contemplo,
nada mais que o tempo
de um olhar que pestaneja.

E esse mínimo instante
é suficiente para explodir
em mim as coisas que dormiam.

Uma faísca e tudo
que eu conhecia
era nada.

E nada do que vejo
é familiar,
uma faísca.

Bastou para iluminar,
bastou para dar-me
a dimensão de que tudo
é indimensionável.

E que as direções,
as durações
e até você
são apenas convenções.

- Caio Augusto Leite

Esquecer


tudo
Apenas ser
e viver
i  m  e  n  s  a  m  e  n  t  e.

- Caio Augusto Leite

Quando não vier a primavera


Assustei-me no caminho,
as rosas começavam a brotar
e nem era primavera.

Se não seguem as rosas o seu tempo,
como posso seguir eu o meu?

Se ontem elas nasceram,
mas só poderiam nascer
daqui um mês,
como confiar nas leis mundanas?

Eu não dependo (mais) da realidade.

Passo sobre todas as projeções,
tratados e prospecções da natureza.
Lei da física não me pega mais.

Quando vier a primavera
e as rosas olorosas
já estiverem há tempos
sob as sombras da figueira
eu saberei que não existe tempo
para quem vive de começos.

- Caio Augusto Leite

Memorial


A palma da mão de pedra
erguia-se sangrenta
sobre a terra.

E eu saía dali
do fundo do mundo,
o suor no rosto,
as armas em punho.

O coração batia fraco,
o latino é um fraco.
Mas gotejava o sangue, da mão
gigante, que escorria feito mapa.

E me achava nesse lugar,
que era tão meu quanto
de todos os mexicanos.

Eu olhei a noite,
eu cantei, eu abri os braços
e abracei a grande mão.

Reconheci o meu irmão,
dentro da pedra batia
numa firme moleza
o nosso coração.

No desespero de estar sozinho
eu vi - pela primeira vez -  os rostos cansados
que iam renascendo das trevas metroviárias.

Foi aí que aprendi a amar.

- Caio Augusto Leite

Ressendo


Não quero mais seguir o caminho
que me levará para a morte bruta.
Eu sou o avesso,
me visto de começo
e estou aqui de novo.

Um novo neném,
uma criança.
Sou sempre lembrança.

E a vida é essa massa de bolo,
que bate, assa e partilha-se.
E que se sofre.

Sofro, pois eu sou eu
e você é você.

Sendo o outro sempre possível,
fica impossível não chover.

E eu sempre volto
para amar o outro.
O avesso, o começo do caminho
é o final daquele primeiro.

Pra não morrer
eu sigo andando.
Cheio de finais,
eu vivo me me acabando.

- Caio Augusto Leite

Estava calor


E o cão se espalhava pelo asfalto,
roubando as últimas refrescâncias do solo.

O céu fazia azuis
e o sol trocava as cores
num harmonioso alvorecer.

O coração podia parar agora.
Para essa potência,
nada era contra potência.

E tudo podia ser.

Se houvesse mar,
banharia-me.
Se houvesse silêncio,
cantaria.

E nem sofreria a solidão,
não precisava do teu abraço
- QUENTE -
pois estavam as coisas no lugar.

Estava calor e o cão...

- Caio Augusto Leite

Amarelo


A bacia cheia de urina,
caldo do corpo mais urgente.
A poesia quente,
mas passada.

Olho,
leio,
acabo.

Dou descarga.

- Caio Augusto Leite

Calos


Mãos vermelhas,
quente atrito,
trem que vai, meu bem.

O que não tenho
não busco mais.
Se choro, se sofro.
Ah, você não vem.

Tão cheio o vagão
mais cheio o meu coração.
De tremores, de dores.
Vai descarrilar.

Mãos com calo,
ando calado.
O trem para
pra eu descer...

Mas continua a trepidar meu peito.
Sei que é vão querer aquilo
que anda por trilhos tão opostos ao pensamento.

- Caio Augusto Leite

Só falta achar


Meu amor é a beleza encarnada,
ele é tanta flor,
tanta chuva,
tanto molho de macarronada.

Meu amor é um perder-se
tão completo
e inconsequente
que a ele me fez prender-se.

Eu sou do meu amor,
quando ele vem na sexta.

Eu sou do meu amor,
até na sua ausência.

- Caio Augusto Leite

Lágrima


Ah,
se o amor for prisão,
não.
Não quero amar.

O espaço, o vasto do horizonte.
O pasto das estrelas,
todo o azul do mundo.

- Deixa-me voar.

- Caio Augusto Leite

Sendo


A vida e seus ir embora,
o tempo de antes
e o de depois.
Nada disso me compõe.

Você diz que me amará pra sempre
eu te beijo, eu te abraço
e respondo:
Te amo pra agora.

- Caio Augusto Leite

Este grande nada


Não há mais poemas por fazer,
os poetas atingiram a comunidade clímax
dos versos, das estrofes e das metáforas.

Tudo que se diga é esvaziamento
e a realidade nem pode ser possibilidade,
as palavras nem chegam a roçar
o véu balão das coisas que são.

E não sendo possível mais nada,
escreveremos sobre futebol.
Sobre galinhas d'angola,
sobre planetas e ciências avulsas.

Não há mais poemas por fazer,
quanto mais me aprofundo
mais me aparto,
por isso escolhi
viver essa pequena glória
de só dizer das poeiras sobre móveis.

Das camadas fáceis,
que não adianta esforço
pois é esforço nulo.

E já nem há mais poetas por nascer.

- Caio Augusto Leite

Pavio


Amor,
tão pavio.
Queima,
corre,
explode.
Sumiu.

- Caio Augusto Leite

Problemático


Alguém que me entenda?
Me poupe.
Eu quero é alguém que me pergunte.

- Caio Augusto Leite

Poema alterado


Sou a única persona possível,
sem máscaras,
sem véus
e nem desconfianças.

Estou aqui,
eu jogo duro
para me mostrar,
eu ralo a pena
para tirar as mentiras
de outro eu avulso.

Perceba meu olhar
que mira o papel
feito espelho
que o texto
se fez.

Qualquer identificação
com minhas palavras
é pura neurose,
não tem nada aqui
além de mim...

- Caio Augusto Leite

[mas parece que quanto mais
me aproximo de mim,
mais me espalho pelo outro.
Ser Eu, é ser o todo,
eu sou todo mundo]

- Caio Augusto Leite

Tão tão


Tão conservador
que usa trema

Tão romântico
que adora a dor.

Tão sozinho
que quer amor.

Tão eu que nada quis,
nem rimar ou rimou?

- Caio Augusto Leite

Pela rua


Cães no colchão.
Aviões decolam
para o Japão.

O homem toma café.
sai de casa
beija a mulher
e cães no colchão.

As avenidas partem,
o sol queima
novo câncer no menino.

Cães no colchão,
talvez chova.
Vento, gripe, trovão.

Inundações,
bombas,
especulação.

O tudo gira
e nada estanca.
E ali - dormem -
cães no colchão.

- Caio Augusto Leite

Cidadão do mundo


A cidade é uma pedra,
e quando cai no mar
- longe da pluma -
pesa e afunda.

Vamos com ela,
se formos
rochas
também.

Não curve-se
ao fácil
estático
das certezas
engarrafadas.

Estancar,
empacar,
regressar...

A cidade é uma pedra,
quase não nascem rosas.

A poesia não é ditadura,
quando abro os versos
pra dizer, digo,
e não tem pedra
que me impeça.

E voo.

Do ciano céu,
vejo a cidade
e dá pena
vê-la tão pequena.

- Caio Augusto Leite

O grande caminho


Queria te pôr no bolso,
te levar pro mundo.
Te mostrar o mundo.

Queria te pôr no osso,
te fazer medula,
te fazer espinha,
te fazer hemácia
- pulsões de vida.

Queria alçar um voo
no teu mar plano,
pleno e sem alvoroço...

Mas quem disse que se pode amar nos ares?
Amor é esse vai-não-vai, esse freia e segue,
esse parte e perde.

O amor é essa estrada esburacada - sem luz, sem voz, sem volta.

- Caio Augusto Leite

Oração


A mudez da noite é indestrutível,
dentro dela as estrelas morrem.
As engrenagens por dentro dos planetas
giram com uma paciência impossível.

Os cometas não anunciam passagem,
por aqui o vento não passa.
As corujas ignoram a presa
e os passos pararam.

Quando a mudez da noite grita
o resto se faz quimera em pó,
que repousa no chão
dessa cidade...

... e quando tudo parecia ócio,
o sol nosso de cada dia
nos desperta, e nos dai hoje
o arbítrio do pecado e da tentação,

só para que no fim do dia,
ante a cama vazia,
eu peça você perto
e o mal distante

- sem saber que os dois são unos -

Eu peço perdão,
mas o sol volta
com novas promessas de orgia
e eu nem posso dizer não.

E eu sou só diabruras
enquanto você não vem.
Toda noite rezo,
mesmo sabendo que sou caso perdido:
Amém.

- Caio Augusto Leite

Identidade


Tudo precisa ser dito.
Nada pode ser esquecido.
A vida é um sopro,
a palavra é um vento.

Elas não podem viver sem nós,
eu posso viver sem elas.
Elas podem ser sem mim,
eu não posso ser sem elas.

A palavra me põe no mundo,
o mundo me põe na dúvida,
a dúvida multiplica a palavra
e a palavra é pura dúvida.

- Caio Augusto Leite

Vidinha


A vida parecia
tão mais comprida-ida.
mas cabia no poema,
num verso,
numa palavra:
despedida.

- Caio Augusto Leite

Poeminha


A vida comeu tantas horas do meu dia,
que já nem sei
quando
nascerá a poesia.

Nasceu?

- Caio Augusto Leite

Meio a meio


Minha metade é mistério,
lado oculto do cubo na mesa.
uma dor de cabeça,
impossível hemisfério.

Ela é azul, quando eu verde.
Quando me vedes, não acho.
Quando procuro, ela é vão
e no ar desaparece.

E fica a cor que não tem: saudade.
Ouve-se canções, tenta, não pode.
Ela fica dançando,
eu fico metade...

- Caio Augusto Leite

Duvidosa resolução


????????
Por que você?
Mas, por quê?
Você é meu porquê e meu por quê (?).

- Caio Augusto Leite

Ao seu lado


Não sei como,
mas você veio
e eu me entendi.

Não sofro mais,
o céu é claro
e a tristeza ri.

- Caio Augusto Leite

Angústia


Tenho lutado todos os dias de minha vida,
diários,
analistas,
amigos,
ninguém vai entender meu desabafo.

Tenho lutado todos os dias
mas já tenho pouca vida.
Que vida, que vontade pode haver
se tudo, se tudo, se tudo
é só saudade?

Que se pode fazer se o meu sonho sempre foi caçar estrelas?

- Caio Augusto Leite

Amando menos


Te amar é amar menos,
medo de não te amar
e vou te amando,
e menos amando.

Não amar é não amar,
viver para amar
é não viver, pois
amando ou não amando
não se ama.

E se não se ama,
não se vive.

Amar viver é não amar
morrer.
Não amar viver é morrer.

Amar é viver e morrer.
Não amar é morrer sem viver.
Amar é não.
E não amar é.

Só não sei o que é,
pois amo e sou não.
E se não amasse, seria.
Mas não quero ser.

Prefiro não ser amado
do que viver sendo,
mas morrendo um dia
com o silêncio do que não ama.

Pena que agora te amo menos.

- Caio Augusto Leite

Poema da contenção


Amor.
Amar é delimitar.
amor.
Agora já não é mais tão grande,
dizes que cabe numa pessoa,
num nome, numa lembrança.
Como que cabe?
Amaria as estrelas,
mas também é pouco.
Amaria o céu, o universo, Deus,
é pouco.
Amaria o nada. Sim, nada.
Só o nada permite a expansão maior
que a palavra Amor tem como potência.
Mas tendo-o, não tenho, Amor excesso.
Amor ideia.
Nós, humanos, queremos a plenitude
mas só aguentamos o encarceramento.

- Caio Augusto Leite

Um passarinho morreu


Eu vi no chão, na grama, eu vi.
Mas nem doeu pena
e nem lágrima escorreu.

Estava passeando com meu amor
e tudo era bom,
mesmo a sabiá calada
- sem penas, sem a pena de mim -
era uma beleza possível.

- Caio Augusto Leite

Remanso


(É doce morrer no mar)

Beira de mar,
rede da boa,
coco-verde,
canoa.

Brisa leve,
areia branquinha,
peixe na brasa,
Janaína.

Cantar Dorival,
o sol bem morninho.
De você
um bocadinho.

Descansar e nada
mais querer.
Viver do mar,
de amar morrer...

- Caio Augusto Leite

Passarando


O presente como um passarinho,
no peitoral da minha janela,
voa e já é passado.

Eu sei que essa é a regra
inabalável das coisas.
Um dia nós também seremos éramos.

- Caio Augusto Leite

Tardio


Você me chamou pra ver o sol
e enquanto caminhávamos
perdia algo que sempre fora meu.

Sentamos nas pedras,
o sol caía
e o meu olhar marejava.

Eu via o cão,
tua mão,
e as nuvens se dissolvendo.

E tudo era antecipação de um nada maior,
o sol,
o sal,
o cão,
tua mão,
tudo estava partindo,
sem querer, sem dizer, sem se poder evitar.

E eu choro, pois só agora fiquei sabendo - iríamos morrer...

- Caio Augusto Leite

Ruptura


Você já não pode mais fingir saber quem é.
Os teus olhos mentem a verdade soberana
que você espalhou pela terra dos homens.

Você não pode ser mais homem
mentindo o que sua essência cobra.
Você é quem mesmo?

Você é dois.
Dois em um.
Um em dois.
Ninguém.

E tudo o que você quer não será plenitude,
será ponte bamba, sem fim, sem começo.
Nunca será,
nunca terá.
O nunca.

Não tenho muito tempo
e odeio tuas certezas.
Um dia eu canso e me vou.

Será que você não repara,
você não é.
Para e pensa:
"Quem sou?"

E pode ser que consiga me entender...

- Caio Augusto Leite

Pedindo perdão


O que vem ali é o indefinido.
Homem? Mulher? Espírito?
É um não-ver noturno,
uma sombra difusa
que se esparrama pela rua.

E mesmo perto não vejo.
E mesmo ouvindo não ouço.
Para mim tudo é nulo,
tudo é fugido, tudo é osso.

Talvez o mundo seja bom
pra quem é bom e vive bem.
Um reflexo do que sentimos,
do que queremos, do que plantamos.

E se colho tempestades
foi por muitos ventos.
E se o mundo é triste,
a culpa minha.

Não cacei respostas.

E o que falo agora, é com esperança
de remissão, de entender
o que sempre soube.

De fazer um pedido,
um só pedido:
perdão.

- Caio Augusto Leite

Caminhaduro


(O viajante)

Não, já não acredito em muita coisa.
Certeza mesmo, só a não nenhuma,
pra que haveria de ter
se ela é só apaziguamento?

Quanto menos creio,
mais vivo.
A dúvida me põe em caminho.

Vivo como o determinado animal
de carga que precisa cruzar
longa estrada pedregosa.

Passo, passo, passo.
Vai tudo passando
e eu duvidando.

A flor, o riacho, o brejo.
Todas as paisagens eu atravesso,

pelo verso que rasga a estrada,
que força impedirá a palavra:
qual chuva, qual sol, qual vento?

O que a vida atrasa, a palavra adianta.
O que numa é tempo,
na outra é sempre.

O quando.

O talvez.

A certa incerteza num Eterno-momento.

- Caio Augusto Leite

Prominto


Duzentas escolas,
amanhã eu vou,
chego em uma hora,
a gente se vê.

Nem te vi aí,
vou bem e você.
Eu garanto.
Eu te amo.

- Caio Augusto Leite

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

E depois do amor




     Agora nós vamos seguir em frente, não mais dois lado a lado. Mas separados. Ainda que te ame. Ou que você me ame. Sabia que a vida era uma tragédia e eu me espanto com ovos sobre a mesa, com cachorros ruivos, com rosas. E você gosta de filosofia. Você quer pensar como as coisas vieram parar no mundo. E eu tento sobreviver dentro desse mundo, mundo de liquidificador. Estaremos misturados, pra sempre. Ainda que a vida tenha coado nosso sumo. Beberemos e brindaremos a vida com outros sorrisos. Com outros braços. Tua boca, que boca é essa que jamais sentirei. E a minha que também não sentirás. A vida me anestesiou, a cada pequena tragédia foi me preparando para o que era certo. O final. Estamos no ponto final? Sempre podemos pegar o mesmo ônibus, com sorte e rever aquele amor secreto que guardamos em olhares espiados.                                                                                   

    Como ontem, passei pela rua e a lâmpada piscava. Pensei em nós. Sabia que estávamos piscando. Hoje eu passei e a lâmpada queimara. Estava escuro e suas mãos foram pra longe. Você se apagou. Eu me apeguei. Eu sofreria mais um pouco, quem sair por último que desligue a luz. Sobrou pra mim a tarefa de soprar a pequena flama de uma paixão que se prometia eterna, e foi enquanto durou. Esses clichês cheios de poesia.                                                                                                                 

    Quando escrevia pensava que podia te colocar dentro de todas aquelas coisas, agora eu sei que a arte é maior do que qualquer amor. Roberto estava certo, ficaram as canções e você não ficou.                                                                                                        

    E é tão pouco que posso falar. Que vai minguando as possibilidades da escrita. Da língua. Das nossas línguas separadas.                                                                                       

   Agora vivo o Amor, sem ninguém por perto. E não tenho mais medo da vida e nem do perigo que é viver. 

- Caio Augusto Leite

A entrada do mundo




     Penteava-se. Moldava-se para sair. Tinha que ajeitar as curvas e dar limite aos seus poros para que o mundo não entrasse. Ser perigosa era sua salvação. E o seu medo era diluir-se. E por se pensar menor do que era, alongava-se com essas plataformas à la Carmen Miranda e com esse vestido vermelho que a acendia. E quanto mais se brilha, mais se ofusca. Não ser ela era também o seu segredo. O era. Pois se alguém se apaixonasse, não correria o risco de perder-se. Não teria obrigação nenhuma de amar, pois amada não era. E não é sempre assim? Ama-se primeiro o que não é. O amor era esse despentear-se. E para que os cabelos não voassem por essa rua, ela puxava com força os fios. Habitual agressão. Doce dor. Doeria agora, mas amanhã se perdoaria, quando visse aquelas outras. Aquelas outras que conservariam olheiras e noites mal dormidas. E ela dormia cedo, pra acordar cedo, pra dormir cedo. Tudo era cedo pra quem não se atrasa nunca. E ser assim era fazer com que tudo seja tarde demais, descobriria ao despertar.                                                                                       

     Capaz de ser feliz, era. Mas como o tímido cantor que nunca soltou a voz, nunca saberia que podia sorrir. Que medo era esse, que havia nela e em mim, de lançar-se?  Tem gente que jamais pula. Por isso não existiram e nem sei o seus nomes para citar exemplo. Outras precisam ser empurradas. A mãe pássaro não ensina o voo. Não ensina-se a sair do chão. Mas sim a não querer ficar nele.                                                      

    Certo. Estava pronta, queria acreditar. E levantando-se cheia de uma pressa vagarosa tinha de ir. A porta era um convite ou uma sentença? Só havia a certeza de que era inútil não sair, dentro de casa também morria-se. E por não poder evitar, ia. E o primeiro passo lá fora era o instante de decisão e como torceu o pé na soleira da porta. E como caiu. E como ralou joelhos e mãos. E como soltou um grito de dor – o primeiro - e só por causa disso algo começava a cambalear num caminhar cheio de liberdade que só os bêbados têm.  A vida entornava-se e embriagava-se de uma cadência que não se pode prever.                          


     Pássaro fora do ninho.          
            
     Flávia. Agora ela tinha um nome. E as ruas também tinham. E as praças e as flores. Tudo era, ao mesmo tempo, estranhamento e reconhecimento do que estava ali parado. É preciso cair do alto, do salto, para ver as formigas no chão. Para ver-se a si. E ventava. E as linhas tão demoradas de ser construir foram caindo pelas calçadas. Despenteada, ela era ela. E o mundo, ela descobriu, não estava grávido. Não precisaria mais esperar, agora estava misturada. Contornos? Esse mundo é mesmo muito misturado. Agora não haveria jeito. Não tinha, ela, alguém que lhe tirasse do perigo de viver. Saberia não se unir às rosas? Bobagem, elas não falam. O perigo é ouvi-las. Precisava ser a vacilante lâmpada que não se apaga, mas que  também não se acende para o pleno vazio. Realmente, ela estava imersa nesse perigo de viver. E, imitando Rosa, só posso dizer que viver é muito perigozo.
              

- Caio Augusto Leite  

domingo, 4 de novembro de 2012

Ainda verde


     Uma bela manhã. Mãe e filha caminhavam pela feira do bairro. Ela, por ser criança e ainda inocente, se espantava com a quantidade de frutas que havia no mundo. E aquilo não era nem metade do que existia. Um dia ela descobriria, que assim como os nomes de frutas, o amargo do limão pode ser sempre maior. Mas por hoje ela só se espantaria com o fato de haver maçãs verdes. Passou por elas e a mãe não mexeu um músculo. Queria perguntar se não iriam levar pra casa aquelas maçãs, mas sentiu que não devia. Guardava pra si a imagem das maçãs, como um assunto proibido que se torna preferido e precisa manter-se guardado para que ninguém mais possa gostar. Era a prática cruel do egoísmo. Tem uma bala pra me dar? Não tenho. Respondem com os bolsos cheios de balas cremosas, crocantes, deliciosas. Ela era tão pequena, cruelmente pequena. Ainda que não soubesse usar essa crueldade. Calava suas maçãs verdes. E seguia com a mãe que comprava bananas prata – como podia ser prata se eram amarelas? E banana maçã? E as bananas verdes, seriam na verdade bananas maçã verdes? Por que misturar as coisas que pareciam tão bem feitas separadas? E se uma banana era prata, podia-se pendurar no pescoço feito corrente ou nas orelhas feito brincos? Qual sentido da composição é o referente no mundo? E como cabiam tantos pontos de interrogação numa cabeça tão pequena? Talvez por ser pequena, ou por não se achar grande. A mente que se pensa grande, se defende e não deixa mais nada entrar, por achar que todo o resto é inútil. Como a mãe que não queria comprar maçãs verdes, pois achava que as maçãs vermelhas eram muito melhores – ainda que nunca tivesse comida as tais outras verdes.                                               

    E quando a mãe parou na barraca de maçãs vermelhas a menina não se conteve e perguntou “Pra que comprar maçãs, já temos tantas em casa, elas apodrecem” e a mãe como se precisasse explicar um mundo inteiro. Olhou com paciência de normalista. “Não é porque temos maçãs em casa, que não precisamos de mais. Você já imaginou se amanhã não existirem mais maçãs?” Era esse egoísmo que ela já experimentava ao ver maçãs verdes. Só podiam ser dela. Como quem ama e afaga, afoga e mata. Também mata-se de amor. Não por amor, mas pelo medo da perda. Mas poderia esperar, como ainda era pequena não sofreria a falta do gosto desconhecido.                                                                                                               

    Num dia repleto de descuidos, ela abriu as compras e ali estavam – prontas para o beijo da boca em sede – as suas (egoistamente suas) maçãs. Pelo resto da vida só comprou maçã verdes. Até sua filha perguntar “Não vamos levar peras?” e era preciso explicar tudo de novo. Pois ela ainda estava verde.   

- Caio Augusto Leite