quinta-feira, 8 de novembro de 2012

A entrada do mundo




     Penteava-se. Moldava-se para sair. Tinha que ajeitar as curvas e dar limite aos seus poros para que o mundo não entrasse. Ser perigosa era sua salvação. E o seu medo era diluir-se. E por se pensar menor do que era, alongava-se com essas plataformas à la Carmen Miranda e com esse vestido vermelho que a acendia. E quanto mais se brilha, mais se ofusca. Não ser ela era também o seu segredo. O era. Pois se alguém se apaixonasse, não correria o risco de perder-se. Não teria obrigação nenhuma de amar, pois amada não era. E não é sempre assim? Ama-se primeiro o que não é. O amor era esse despentear-se. E para que os cabelos não voassem por essa rua, ela puxava com força os fios. Habitual agressão. Doce dor. Doeria agora, mas amanhã se perdoaria, quando visse aquelas outras. Aquelas outras que conservariam olheiras e noites mal dormidas. E ela dormia cedo, pra acordar cedo, pra dormir cedo. Tudo era cedo pra quem não se atrasa nunca. E ser assim era fazer com que tudo seja tarde demais, descobriria ao despertar.                                                                                       

     Capaz de ser feliz, era. Mas como o tímido cantor que nunca soltou a voz, nunca saberia que podia sorrir. Que medo era esse, que havia nela e em mim, de lançar-se?  Tem gente que jamais pula. Por isso não existiram e nem sei o seus nomes para citar exemplo. Outras precisam ser empurradas. A mãe pássaro não ensina o voo. Não ensina-se a sair do chão. Mas sim a não querer ficar nele.                                                      

    Certo. Estava pronta, queria acreditar. E levantando-se cheia de uma pressa vagarosa tinha de ir. A porta era um convite ou uma sentença? Só havia a certeza de que era inútil não sair, dentro de casa também morria-se. E por não poder evitar, ia. E o primeiro passo lá fora era o instante de decisão e como torceu o pé na soleira da porta. E como caiu. E como ralou joelhos e mãos. E como soltou um grito de dor – o primeiro - e só por causa disso algo começava a cambalear num caminhar cheio de liberdade que só os bêbados têm.  A vida entornava-se e embriagava-se de uma cadência que não se pode prever.                          


     Pássaro fora do ninho.          
            
     Flávia. Agora ela tinha um nome. E as ruas também tinham. E as praças e as flores. Tudo era, ao mesmo tempo, estranhamento e reconhecimento do que estava ali parado. É preciso cair do alto, do salto, para ver as formigas no chão. Para ver-se a si. E ventava. E as linhas tão demoradas de ser construir foram caindo pelas calçadas. Despenteada, ela era ela. E o mundo, ela descobriu, não estava grávido. Não precisaria mais esperar, agora estava misturada. Contornos? Esse mundo é mesmo muito misturado. Agora não haveria jeito. Não tinha, ela, alguém que lhe tirasse do perigo de viver. Saberia não se unir às rosas? Bobagem, elas não falam. O perigo é ouvi-las. Precisava ser a vacilante lâmpada que não se apaga, mas que  também não se acende para o pleno vazio. Realmente, ela estava imersa nesse perigo de viver. E, imitando Rosa, só posso dizer que viver é muito perigozo.
              

- Caio Augusto Leite  

Um comentário:

  1. Como pode narrar esses rituais de passagem assim, tão de leve mas com uma dramaticidade tão intrínseca e gostosa? Lindo.

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