segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Vista da janela

Poeta das represas.
Contendo versos,
barrando estrofes,
impedindo as rimas.

Difícil ser poeta,
quando tantos pensam
que só rimar e só amar
basta para o ser.

Difícil vencer o tédio,
edifício de mármore e morte.
De sete andares, talvez mais.
A sorte num atirar-se de janela.

E a janela, oca ou profunda?
Um mundo inteiro me esperando.
E esperar não mais aguento,
abro as cortinas e enfrento o Todo.

E do Todo vejo a parte.
E da parte me integro ao Todo.
Difícil ser poeta e ser feliz.
Difícil abrir a janela e não morrer de frio.

- Caio Augusto Leite

A grande noite

Antes do vácuo, a existência:
recoberta de nevoeiro.
Depois do mar, a terra seca:
fritando a sola em solo.

Antes da morte, tantos planos:
grandes, pequenos, importantes.
Depois da luz, a grande noite:
cometas, eclipses, o vazio.

Antes do sábado, nenhum homem.
Só Deus e o mundo em formação.
Depois do sopro, tantas guerras:
Quentes - mornas - frias.

Antes de mim, tantos poetas:
Carlos, Manuel, João.
Depois de livre, é preso o verso:
na cédula, no aço, no sempre.

Depois de tudo, nenhuma certeza.
Antes do fim, uma Estrela
brilhou infinita e definitiva:
- Então calou-se de vez o caos da noite.


- Caio Augusto Leite

domingo, 30 de outubro de 2011

Anacolutos

Descobri meu problema,
a razão maior pela qual
eu não consigo conquistar.

Já sei o motivo de não saber,
de não saber ser feliz
e de não poder me mostrar.

É que eu, meu bem
sou cheio de anacolutos.
Eu te am... eu te... eu..
Eu já não sei mais nada.

- Caio Augusto Leite

sábado, 29 de outubro de 2011

Histeria no Beco das Garrafas


Batiam as dez badaladas na Little Club, com uma vista privilegiada espiava o ir e vir dos boêmios tristes. Enquanto mantinha meu olhar uma figura chamou minha atenção: olhos tristes e vazios, por certo com a mente presa a algum amor partido. Seu terno, mesmo em desalinho, impunha todo seu alto nível social. Talvez morasse no Leblon ou Copacabana. Vinha com um passo caduco, cambaleante, quase caindo no primeiro dos três finos degraus da entrada. Passou gingando por entre casais, amigos exaustos e por um político e sua amante, camuflados pela escuridão da mesa onde se abrigavam.
Dirigiu-se ao garçom com meia dúzia de palavras encolhidas. Vieram em sua direção uma, duas, três doses de um líquido âmbar - conhaque provavelmente. Desviei o olhar para o palco onde lentamente começava um samba-canção. A iluminação tornou-se escassa, a exceção da luz difusa das pequenas lamparinas que cada mesa possuía, o clima nostálgico invadia cada poro dos ali presentes.
Enquanto a música chegava a seu final “me abrace simplesmente, não fale não lembre, não chore meu bem...”, um estilhaço cortou o ar. Um copo de vidro fora arremessado com violência no breve instante que me distraí. A figura fúnebre liberava toda sua raiva nos objetos ao seu alcance. O esforço que fazia tornava rubra a sua face, gotas de suor encharcavam suas vestes e os cabelos num redemoinho de confusão.
Em seu gritar gago, embriagado, ouvia-se fragmentos como: “ela vai voltar”, “ela me ama”, “eu ainda sou dela”, e outras desvairadas declarações. Subiu na mesa, seu sapato italiano evidenciou-se quando as luzes se acenderam. Olhares assustados, os casais recuaram, as risadas abafaram e a acompanhante do tal político escafedeu-se antes que levantasse alguma suspeita.
“A polícia foi chamada”, cochichou um dos garçons. Levantei-me, fui ao balcão, o bêbado ainda fazendo seu escarcéu, paguei a conta e fui em direção à Vogue, lá o clima era sempre agradável. Antes de sair lancei um último olhar de compreensão e lembrei-me do tempo em que era eu quem estava ali berrando desesperado. No caminho as sirenes coloriram os muros e as ruas de paralelepípedos. Depois da meia-noite fui para casa.
Era agora manhã, o sol invadia sem pudor as janelas que Maria deve ter aberto. Pus o pé no piso frio e do oitavo andar vi a cidade já acordada. Cerrei as persianas e me larguei na cama quente. Hoje era sábado, e o sábado era o dia sagrado de redenção para mim, para o bêbado da Little Club e para todos que aguardam o retorno da amada. Um barulho de ambulância passou e foi ficando longe, longe, longe... E antes que desaparecesse havia adormecido novamente.

- Caio Augusto Leite

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Remover


Enquanto esperava na grande fila, ereto e definitivo, o sol começava a nascer além dos prédios próximos – nuvens negras pairavam perigosamente no abismo celeste. O único som era o das pessoas que conversavam, pois se conheciam ou que conversavam pra se conhecer. Em sua mente pensamentos avulsos, desdenhosos, cansados e planos do que falar. Nada indicava a vida, parecia que as pedras frias das paredes concretadas haviam escapado e atingido os corpos humanos que ali aguardavam seu momento. Um ônibus surgiu na curva, cambaleando, cheio, transbordante. E então outro, e mais outro e diversos outros. No céu um avião pontilhava seu destino, deixando no ar um rastro de fumaça branca. Nos fios de eletricidade fitinhas de rabiola balançavam fracamente em função da brisa matinal. Mais um ônibus passava, e o espaço se movimentando acovardava o rapaz ali parado. Invertiam-se os papéis, quem era o ser vivo agora? Quem era o espaço oco? Uma triste indagação, difícil, quase impossível de se responder.
Mas ainda é verão, gosto desse tempo ameno, colorido de luz, o sol imponente. Agora eram as nuvens que se moviam, encobriam paulatinamente o calor que emanava do astro-rei. Devia ter trazido uma blusa – uma rajada forte de vento soprava e agora as fitinhas estavam ensandecidas. Devia ter ouvido mamãe e ficado em casa. Devia ter ficado dormindo até mais tarde, a cama quente. Não devia ter esquecido o guarda-chuva em cima da mesa – a chuva começava a cair – fraca, média, forte, chuva de chuveiro. Todos correram, todos abandonaram a fila. Todos foram se abrigar em algum lugar. Ele não, ele ficou ali um pouco – espaço ou pessoa? A questão emergia novamente. A porta do estabelecimento abriu-se. Acordei cedo justamente para isso, fiquei aqui, pois não sabia desistir das minhas metas. Pela primeira vez, desde que estancara ali para esperar, o jovem se moveu. Uma perna, a outra. Um passo de cada vez, tranquilo na chuva que caía. Movimento horizontal furando a cortina de água vertical. Encharcado, trêmulo, mas sempre confiante. Adentrou a porta dupla de vidro jateado. Limpei os pés no tapete, sujei o piso limpo. Encontrei quem procurava. Tocou o ombro da mulher de costas, seu olhar se encontrou com o dela. Removeria agora as pedras do caminho, poria tudo em pratos limpos. Esclareceria os maus entendidos. As pupilas dilataram; os lábios, finalmente, ganharam movimento e vida:
- Precisamos conversar...

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Levado por maus ventos

O vento sopra as folhas.
Folhas secas de outono.
Eu sou folha, sou seco,
sou morto e sem destino.

Sou folha pequena,
da grande árvore
sou ínfimo.
Sou menino ainda.

Sou folha de Verlaine,
de lá,
pra cá.
Pra onde o vento me levará?

- Caio Augusto Leite

domingo, 23 de outubro de 2011

O moço que conheci

Passou a mão pela barba rala enquanto caminhava pela rua, mal vendo as pessoas que passavam. A cidade gritava em seus ouvidos cansados. As luzes explodiam em suas retinas fracas. Seus pés não pareciam querer mais caminhar. E ele andava atordoado, sem rumo, sem condições de voltar para casa. Se é que teria uma casa ainda. Não podia explicar o que acontecera. De uma hora pra outra, uma palavra dita na hora inadequada e pôs tudo a perder.
Chutou uma pedrinha no caminho, e se sentiu assim como aquele pedaço de mineral. Enxotado, inútil e tratado como se não houvesse coração. E tudo por tentar se defender das agressões que por tanto tempo aceitou calado. Saberia ser forte – deveria saber – não era uma opção em todo caso. Em sua face, a marca da palma fina permanecia quente. Seus olhos permaneciam frios.
Os gritos ecoavam em sua cabeça e por um impulso decidiu voltar para resolver aquela situação. Não poderia viver assim. Com a incerteza em seu coração. Precisava consertar o sorriso que fora estilhaçado no tempo. Voltou com passos de raio. E em menos tempo do que previa chegou à frente do apartamento onde dividira aquelas infelicidades cotidianas.
Porém havia uma movimentação estranha por ali. Pessoas aglomeradas e algumas sirenes manchavam a noite escura. E manchado também estava o chão quando se aproximou e reconheceu o cadáver em suicídio (provavelmente). “Ela se matou, tinha brigado com o marido. Assim que ele saiu, se jogou” – gritava uma senhora apavorada. Em sua mente permitiu-se corrigi-la: “ela havia morrido no momento que decidiu fazer das nossas vidas um calvário”. Podia soar estranho um homem sofrer nas mãos da mulher, mas era isso que acontecia e toda sua passividade era a causa disso.
E por mais que tenha vivido com ela tanto tempo, não rolou sequer uma lágrima de caridade. Virou o rosto e caminhou com um sorriso enorme no rosto. Podia parecer maligno ou até mesmo satânico. Mas era amor próprio mesmo. Não chorou a morte dela e não choraria em nenhum momento futuro. A morte ajustou-se para que sua felicidade fosse consumada. E assim seria.
Tirou um cigarro do bolso e acendeu-o com displicência. A chuva começou a lavar as calçadas enquanto as pessoas dispersavam-se para seus lares. O sangue chegava a seus pés e com um gesto de asco seguiu na direção oposta. Iria para um hotel barato e esperaria a herança que dela viria. Pensava consigo que estava agindo certo. Estava completamente confiante que poderia ser feliz dali em diante. Esqueceria aquele passado – esqueceria não, já havia esquecido.
Continuou a caminhar pelas ruas cheias de poças, com a roupa molhada e a alma livre. O homem seguiu em frente e as olheiras aos poucos pareciam apagar-se de seu rosto. Apertou-se no agasalho com um pouco de tremedeira. Era pura chama em seu corpo e eterno riso em sua íris. Assim desapareceu na cidade escura e nunca mais o vi.

- Caio Augusto Leite

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Obituário pré-morte


“- Está morto – disse.
E de fato estava, quem matou foi a palavra”.



É preciso que se esclareça que não sou um Brás Cubas da vida – e nem posso ter pretensão de o ser, Machado sabe disso – sou mesmo um narrador vivo e de carne e letras. Pretendo com esse texto confessional acabar com os clichês que irão se instaurar depois do canto do cisne. É muita injustiça não poder rebater as opiniões leigas das pessoas que vêm ao meu último adeus. Não vou deixar elas sem resposta, não vou deixar que me pintem como um diabo e nem que me glorifiquem como um anjo de candura. Vou aqui me desvendar – mas como narrador que sou não terei a neutralidade necessária para convencer a todos, irei tentar.
Olha, não sei como e nem quando vai ser o momento mais propício para a leitura dessas linhas, mas fiquem sabendo desde já que eu não era tão bom assim. É isso mesmo, não era o doce de pessoa que vão dizer que eu era, não era tão caridoso, não era assim amigável, não era feliz. Mas também não era o contrário disso. Era um pouco de cada, mas nada definido, nada que se possa definir com totalidade. Tive sonhos? Quem não os teve? Tive amores? Aos milhares. Tive vontades que não realizei, tive fomes que não matei, tive doenças que não curei. Não era muito ambicioso, mas tolo também não era – acho que esse meio termo foi o que me matou – que me matará, aliás.
Caros leitores (homens e mulheres) sei que se leram até aqui, estarão duvidando se me conheceram de verdade. Mas se nem eu me conheci e nem eu podia me autodominar, como é que vocês aí de fora da minha consciência poderiam o fazer? Fiquem tranquilos amigos do peito, vocês me fizeram menos triste, vocês me compreenderam bem, vocês foram os que mais se aproximaram de descobrir quem eu fui.
Não chora não meus amigos, não chora não. Tô bem melhor aqui, onde quer que seja o aqui. Não chora Zeca e lembre-se dos meus conselhos – creio eu que eram bons. Não chora Maria, lembre-se dos meus beijos – creio eu quero eram bons. Não chora Flora e Macabéa gostei de lê-las, vou poder encontrá-las, vou virar palavra também. Não chore ninguém, fiquem todos em paz, fiquem todos bem, fiquem todos consolados. Ah, mas que momento dolorido aonde a carne vai se desrrealizando e o conto vai virando crônica banal...

e a crônica barata vai virando poesia.
Vai virando versos de despedida.
É a hora da estrela, diria clara, Clarice.
E eu só queria uma fita amarela
para colocar no meu moinho.
É doce naufragar nesse mar - diria um poeta.
Acabou a serenata e todos os clichês de morte
foram mortos pela palavra. Descansei em paz.


- Caio Augusto Leite



quarta-feira, 19 de outubro de 2011

In natura

Já não enfeito
o meu poema
com tanta flor.

Para quem entende bem
basta uma palavra:
Amor.

- Caio Augusto Leite

Vênus

Infinito planeta:
sem água
sem terra
sem colheita.

Infinito querer:
beber
deglutir
amar.

Vivo da terra e de beber.
Mas vivo pra colheita.

Se não houvesse o verbo amar
não existiria tal planeta.

- Caio Augusto Leite

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Eu vi gatos

Vi gatos nas janelas.
Grandes, pequenos,
pretos e malhados.

Vi gatos em várias janelas.
Quantos gatos haviam?
Um em cada janela.

Um em cada janela.
Mas muitas janelas,
tantos gatos.

Me perguntei:porque não vi,
em outros tempos, gatas
e gatos pelas janelas?

Talvez não tivessem gatos ou janelas.
Talvez eu tenha ficado tempo demais,
sendo gato dos outros, na minha janela.

- Caio Augusto Leite

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Baile triste

Baila tristeza,
bela dama de negro.
Baila tristeza
antiga dama francesa.

Baila que é teu o salão,
inevitável rodopiar.
Baila ao som sem compasso
dos acordes em meu coração.

Baila tristeza,
fecha a ferida dolente.
Baila e faça da saudade
chama silente.

Baila tristeza
que o tempo permite.
Baila tristeza
e esqueça que foi triste.

- Caio Augusto Leite

sábado, 8 de outubro de 2011

Meu par

Quando achares que estou raso
é pois que o fundo não mais vê.
E quando tentares em vão me revelar
em negativos me faço e nada saberá.

Quando puderes e quiseres é só cantar,
eu como pássaro das matas
e apreciador das belas vozes
te seguirei por onde fores.

Quando não mais sonhar - fecha os olhos
e que sejam minhas mãos a te acordar.
Belos sonhos irão nascer
e neles somente dois: eu - você.

Quando em vão tentar voar
é aí que me terá demais.
Pois todo o coração envolto estará
e em tuas ações para sempre o verbo meamar.

- Caio Augusto Leite

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Relapso

Eu nessa vida fui o outro.
Fui o que não fui,
queria o que não sou.

Eu nessa vida fui demais,
sonhei demais
amei demais
chorei demais.

Eu nessa vida não fui o coração.
Fui fígado, fui cérebro,
fui pâncreas e pulmão.

Eu nessa vida só fui humano,
na mais básica função,
funções puramente biológicas.

Nessa vida não fui muito,
mas quem espera muito acaba sofrendo.
Eu sofri o quanto pude, na medida certa.

Nessa vida eu fui só neutro.
Nem esquerda e nem direita.
Nem Buarque e nem Veloso.

Fui nulo, fui branco.
E aceito meu castigo
por ter sido tão relapso de mim.

- Caio Augusto Leite

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Eu vi a morte

Depois que a morte veio
tão lúcida e perto
eu entendi que a vida existe.

A morte que cala os olhos
e faz as mãos tremerem
e a dor se acentuar em lágrimas.

Vi a morte de perto,
tão longa morte
em mim a vida pulsa.

A vida que sopra
que chove mágoas
e a morte expulsa.

Eu vi,
eu vi a morte.
Eu vi a morte,
eu vi.

E nada mais pode afagar
o som do silêncio.
O som da despedida
sem adeus.

Meu Deus Bandeira
não sabia eu
como a morte
era grande.

- Caio Augusto Leite