Debruçado na janela observava a chuva que caía e que açoitava as flores no canteiro, pobres margaridas, rosas e violetas que resistiam com firmeza o véu d’água que desabava. Os cachorros de rua abrigaram-se, os pássaros em algum galho protegido, os ratos e outros animais estariam por aí – em algum oco de árvore, em alguma toca ou até mesmo dentro das casas. A lâmpada vacilava a cada raio que iluminava o céu, o trovão ecoava com mais vigor dentro daquela moradia, pois era quieta e vazia. A solidão fazia os sons ecoarem com mais profundidade e tristeza, parecia que o eco saía do próprio peito órfão do rapaz na janela. É que ali, naquela cidade, ninguém queria saber da sua dor – é que a sua dor era meio banal perto da dor dos outros. O sofrimento só é engrandecido quando vem acompanhado de uma desgraça descomunal. Sim, sofrer de saudade era muito banal.
Mas ainda era verão e essa tempestade não iria durar mais tanto, com certeza mais uns dez minutos e tudo voltaria ao normal. E estava repleto de razão, as nuvens cansaram de chover e por trás delas um solzinho tímido conduzia seus raios pelo quintal encharcado. Rebrilhava alguma semente de esperança no coração do homem – pequena e frágil semente de mamão. O rapaz espreguiçou-se e foi até o quintal, sujou seus pés com lama. Um arremedo de sorriso perpassou os lábios frios e secos e tudo estava lindo sob a luz clara do astro-rei. Nada parecia triste e mesmo as flores despedaçadas pela chuva inspiravam certa fascinação no olhar do moço. O tempo corria e sob o vento da efemeridade, as nuvens, as flores e as dores eram diluídas incansavelmente. O homem suspirou e aproveitou aquele momento raro antes que ele também se acabasse.
- Caio Augusto Leite
sábado, 31 de dezembro de 2011
Bonança
sexta-feira, 30 de dezembro de 2011
Com zelo, sem selo
Sob o sol quente de dezembro caminhava o carteiro, fazia as últimas entregas daquele ano. Passava pelas calçadas esburacadas e dificultosas da grande rua. No ar aquele clima de ansiedade e histeria se apossava das pessoas. Para elas o ano não poderia acabar e ao mesmo tempo o novo ano deveria chegar logo, ninguém sabia ao certo o que querer. Mas o carteiro caminhava com seu uniforme azul escuro com amarelo ovo, a roupa bem lavada e bem passada. A primeira encomenda era para Dona Zefa, a senhora de setenta anos que se não fosse pelo seu pequeno cãozinho, moraria sozinha. Passou pela casa verde, ali ele não conhecia ninguém – era o grande mistério da rua. Entregou pro Seu João, pra Marisa, pro Lucas e pra Joana. Desejava “Feliz ano novo” para cada pessoa que recebia a correspondência de suas mãos. Para aquelas que ele não encontrava em casa, deixava um pequeno cartãozinho com os mesmos votos de prosperidade para o ano que chegaria. Mais pra frente, lá pelo meio da rua, algumas crianças jogavam futebol e num chute descuidado de um dos garotos a bola voou em direção ao rapaz, este deixou a bolsa cair e muitas cartas se espalharam pelo chão. Rapidamente ele agachou-se e recolheu as preciosas cartinhas e as contas de água e luz. Levantou-se sacudiu a poeira, aprumou-se e seguiu seu caminho como se nada tivesse acontecido – era dedicado e orgulhoso com seu trabalho, todas as correspondências deveriam ser entregues, era seu dever.
Agora sim, parou diante da casa que estava em seu pensamento desde o momento em que havia acordado. O grande portão branco, o sobrado azul, a moradia que habita seus sonhos há tanto tempo. Retirou uma carta do próprio bolso, pois essa fora escrita por ele mesmo. Um envelope dobrado com delicadeza, a letra caprichada e o conteúdo pensado, repensado e desesperadamente reinventado. Páginas e mais páginas de papel amassadas, no lixo, no chão, em cima da cama. A noite inteira, a madrugada e finalmente a mensagem perfeita. A mão agora tremia ante o momento decisivo de colocar a carta na caixinha prateada, respirou fundo e com coragem consumou o ato. Pelo buraco do portão passou um pacotinho com a bijuteria que comprara alguns dias antes.
Já era noite quando a moça chegou do trabalho e ao ver o pequeno envelope se espantou: ninguém nunca tinha lhe mandado uma carta. Retirou, não achou selo e nem nome – leu a declaração de amor, mas não sabia que reação deveria ter, nem feliz nem triste. Nem azul, nem rosa – que cor teria agora? Pálida com certeza, branca como cera. Alguém no mundo sabia de sua existência, alguém no mundo queria seu bem, alguém que ela não sabia quem. Como era dolorosa essa sensação de ter e não ter – de saber e não saber. Pra que essa falsa ilusão? Pra que machucar o coração assim? Era muita maldade fazê-la de idiota, mas mesmo assim guardou a carta com carinho no bolso da blusa. Abriu o portão e percebeu o embrulho no chão e retirou uma fina corrente com um pequeno pingente em forma de envelope. A mulher sorriu, pois agora ela sabia quem havia lhe dedicado aqueles mimos. E enquanto a mulher entrava – o sorriso ainda na face - o seu remetente ia sentado num banco de ônibus para sua pequena casa. Seu olhar estava cansado e ainda assim feliz, pois carregava consigo a certeza de que tinha cumprido seu objetivo com perfeição. O homem nem imaginava, mas ele era o melhor carteiro da cidade.
quinta-feira, 29 de dezembro de 2011
Clara ilusão
Já estava lavando as folhas quando o cachorro latiu, “Parece que tem alguém na porteira” – ela pensou ao espiar pela janela e tentando identificar de quem era o vulto ao longe, seus olhos já não enxergavam bem. Finalmente descobriu de quem se tratava. “Se chegue seu Tomás, a porteira tá aberta” – gritou da janela. O homem curvado adentrou a propriedade e pouco tempo depois já estava na soleira da porta. “Trouxe esses peixes do ribeirão, te interessa Dona Clara?” – falou o homenzinho. “Obrigada seu Tomás, vou ficar com eles sim, quanto tá custando?”. O homem disse o preço dos peixes e Dona Clara contou as notinhas gastas e depositou na mão estendida de Tomás, no mesmo instante ele passava a sacola com os peixes embrulhados no jornal. “E esse bocado de comida, alguma comemoração?” indagou o homem ao olhar a quantidade de panelas sobre o fogão. “É sim seu Tomás, hoje meu filho que mora na cidade grande vem me visitar, mandou carta e tudo – o Padre Cláudio que leu pra mim” os olhos de Dona Clara brilhavam. “Quanto tempo não vejo seu menino, deve tá um homem já” disse Tomás nostálgico. “Tá sim seu Tomás, faz tanto tempo que não vejo meu Pedrinho, ele vai trazer os filhos e a esposa – esses eu ainda nem conheço.” “Mas nossa Dona Clara, faz bastante tempo mesmo!”. “Faz uns par de anos mesmo, mas é que da última vez os filhos e a mulher não puderam vir”. “Entendi. Bom Dona Clara, agora eu preciso ir que tem muita coisa pra fazer lá na casa do Seu Manoel, um bom dia pra Senhora, manda lembrança pro menino”. “Vai com Deus seu Tomás, mando as lembranças sim, um bom dia e bom trabalho.” O homem saiu com seu passo miúdo, cruzou a porteira e desapareceu na estrada.
Dona Clara suspirou e guardou o peixe na pequena geladeira – um dos únicos objetos elétricos da casa. Não havia lâmpadas, pois essas foram pouco a pouco queimando, e ela ainda não tinha arrumado tempo para trocá-las. Mas isso nem a incomodava, uma vez que viveu grande parte de sua vida sob a luz do lampião. Energia elétrica mesmo chegou há uns dois anos. Olhou para o relógio lascado e era mais de meio-dia. Resolveu almoçar sozinha, estava morrendo de fome. Comeu, mas não parou pra descansar, logo se levantou e foi preparar um delicioso bolo. Bateu a massa e foi varrer o quintal. Pegou a vassoura de piaçava e enquanto varria a poeira subia. Depois foi dar de comer aos dois porcos no chiqueiro. Agora iria lavar roupa, bateu as peças no tanque, torceu-as e penduro-as no varal sob o sol quente da tarde. Foi seguindo sua rotina e nada do rapaz chegar. Terminou por fim de lavar a louça, enxugou as mãos no avental e ao olhar o relógio mais uma vez o dia já alcançava sua décima sétima hora. Sentou-se na cadeira de balanço, na varanda, e ficou ali esperando o filho tardio enquanto a claridade ia rapidamente se esvaindo.
Então uma buzina rasgou o ar seco e na porteira um carro surgiu da vasta estrada. Dona Clara sorriu e se levantou rapidamente para receber quem chegava. O carro estacionou e dele saíram quatro pessoas. A senhora abraçou o filho com toda a força do seu pequeno coração gigante. Também abraçou os netinhos e a bela nora - jovem e bem vestida. As crianças ficaram brincando no quintal, os outros três entraram. Colocaram as novidades em dia, riram e choraram. Eles já haviam almoçado pela estrada, ela então decidiu botar o bolo na mesa e passar um café preto bem quentinho. Era tudo tão maravilhoso e inacreditável. Ao longe uma coruja piou e a cena desapareceu como fumaça ao vento. Dona Clara acordou assustada na sua cadeira de balanço, a noite já caíra. Os pássaros voavam para suas moradas, as galinhas cochilavam nos seus poleiros. Sapos e insetos tocavam a sinfonia noturna. Algumas lâmpadas brilhavam em casas distantes. A lua plácida e prateada pairava absoluta, as estrelas ornavam todo o imenso firmamento – eram esses os grandes companheiros de Dona Clara. Qualquer corpo celeste passou riscando a noite, a velha recostou-se na cadeira e conformada voltou para o seu sono.
terça-feira, 27 de dezembro de 2011
A matriarca
Alguém entrou no quarto escuro. Era a filha mais velha que depois de tantos anos regressava para esse momento único e importante. Vestia um elegante vestido negro coberto de rendas, o cabelo num coque bem apertado, a boca pálida. Os olhos esquadrinhavam o quarto numa falsa curiosidade, como se tentassem evitar o instante em que teriam de encarar o corpo esquálido que expirava na cama bem acolchoada. Foi até a janela, abriu as cortinas e uma nesga de sol adentrou o ambiente iluminando e revelando as rugas profundas sobre o rosto da senhora ali deitada. A filha virou-se lentamente e caminhava como se o chão estivesse coberto de espinhos ou cacos de vidro. Era penoso o caminho, era sua via-crúcis particular. O sapato de salto fazia toque-toque no piso de tacos. Parecia um relógio que contava os minutos ou segundos para o grande momento. Não havia pressa, o padre já dera a extrema unção, todos que podiam já haviam se despedido – as outras filhas, as sobrinhas, os vizinhos próximos. Não havia marido para chorar, era viúva há algum tempo, não havia mais tias e nem tios de nenhum dos lados – era a matriarca absoluta da família.
Chegou enfim, ajoelhou-se na beirada da cama, a moribunda olhou e por alguns momentos não reconheceu o rosto da mulher prostrada no seu lado esquerdo – lado esse que sempre guardou uma lembrança, finalmente voltava a sua primogênita para o lugar de onde nunca deveria ter saído. Para o lado pulsante da vida. As mãos se tocaram – uma enrugada e fria, a outra ainda lisa e cálida. O olhar da velha capturou o olhar da outra. As bocas de vez em quando ameaçavam emitir algum som, mas nenhuma palavra foi dita, cada uma sabia o discurso da outra e era inútil perder tempo agora. Não havia mais mágoas, não havia mais inquéritos, não havia mais dissabores. Nessa hora que antecede o passamento todos os pecados são redimidos. Nem dez minutos transcorreram e então o toque da mão se afrouxou, os olhos perderam o brilho e a boca já não falaria mais nada. A filha levantou-se, ficou ereta e decidida como uma torre negra sob o rigoroso vento do inverno. Então se moveu, tomou todas as providências – vestiu e maquiou o cadáver, preparou o velório, comprou o caixão e pagou todos os gastos do sepultamento. Ocupou a cadeira de espaldar alto que era, em outros tempos, destinada à defunta. Era assim que deveria ser, pois assim vovó dizia: “Rei morto, rei posto”.
- Caio Augusto Leite
segunda-feira, 26 de dezembro de 2011
Aquele bem antigo
domingo, 25 de dezembro de 2011
Feliz Natal
Já era noite da véspera de Natal. A decoração estava impecável. A árvore estava repleta de bolas, anjinhos e no topo a grande estrela de Belém. Os presentes estavam sob a tal árvore, só seriam entregues depois da meia-noite. Os pisca-piscas contornavam toda a casa, se enrolavam na velha árvore da calçada e assim destacavam a moradia que em outras épocas do ano ficava oculta pela negra noite. Os talheres ainda arrumados, as taças ainda inteiras, as crianças brincando lá fora. Todos os convidados já haviam chegado. A TV transmitia inutilmente qualquer especial de fim de ano. No céu, rojões tímidos estouravam uma hora aqui outra ali – os pequenos animais do condomínio estavam desesperados, latiam sem parar. O clima estava quente, mas uma ínfima sensação de umidade dava a impressão de que ainda choveria.
Longe de toda essa baderna natalina, no cômodo mais alto e mais afastado da casa o homem admirava a janela da pequena lavanderia. A fantasia fora colocada há algum tempo – deixara a barba postiça de lado, colocaria no grande momento. A noite foi avançando, de quando em quando uma empregada trazia algo de comer e beber. “Essa noite vou ganhar uma grana preta, só pra entregar meia dúzia de presentes” – pensou o Papai Noel com um sorriso ambicioso no rosto. “Todo Natal é assim, alguma família grã-fina me dá uns cascalhos para fazer a alegria dessas crianças idiotas”. Lá fora a chuva começou a cair, a janela ficou aberta e o piso sendo molhado sorrateiramente.
“Até que essa chuvinha refrescou, mas ainda tô com um calor danado”. Tirou do saco vermelho um presente nada ortodoxo, uma garrafa de vinho barato que ganhara de alguém. Encheu o copo e bebeu, comeu um pedaço de torta. Comia, bebia, comia, bebia, bebia, bebia, bebia. De gole em gole a garrafa ficou vazia. O cérebro foi ficando confuso e as imagens difusas. Ficou com raiva do Natal, amaldiçoou meio mundo com nomes feios. Olhou no relógio e estava tão ébrio que pensou que um dos ponteiros havia caído. Mas rapidamente constatou que faltava menos de um minuto pra hora desejada. Pegou a barba, colocou de qualquer jeito no rosto, levantou rapidamente e num passo em falso acabou escorregando na pequena poça que a chuva deixara. Sem controle do corpo caiu no varal e se enroscou todo, em desespero começou a se debater para tirar os cordões de aço que lhe marcavam a pele. No meio dessa agonia, sem ver pra onde ia, o corpo foi em direção à janela escancarada. Levou só alguns segundos para o baque final.
E então por toda a cidade, dezenas ou centenas de Papais-Noéis também estavam com suas roupas vermelhas, suas barbas longas, seus capuzes felpudos, com suas botas e com seus trenós estacionados em algum lugar. Eles surgiam dos fundos das casas, das janelas ou das garagens. Vinham com seus sininhos e com os sacos cheios de presentes. Abraçavam e beijavam as meninas, os meninos, as senhoras e os senhores. Sentaram nas cadeiras reservadas – os olhos de todos brilhavam com a falsa maravilha do lendário Bom velhinho. Feliz Natal!
sábado, 24 de dezembro de 2011
Cresça: vire homem!
Caminhava decidida, já estava no primeiro degrau da escada quando ouviu um estampido. Ficou pálida, plácida, os olhos arregalados, o pé suspenso no ar em direção à escada. O barulho viera do quarto que acabara de deixar. Ia embora ou voltava? Decidiu voltar. Abriu a porta com receio e a cama que há pouco se enfurecera com os movimentos sensuais estava agora incrivelmente parada. Parada demais, o homem agora estava de decúbito dorsal, as pernas e braços em ângulos irregulares. No ouvido direito havia um buraco escuro onde minava o sangue viscoso que escorria pelo rosto, pela barba felpuda, e se empoçava no lençol amarelado. O revólver estava caído do lado da cama.
Olhou com desespero, não poderia ser vista ali. Sabia que sendo quem era, estando onde estava, ela seria a primeira acusada pela morte do empresário. Ficou de frente para o cadáver, os olhos ainda estavam abertos, miravam o nada ou tudo. Mirava o escuro infinito da morte através das retinas sem brilho. “Como um homem rico, bonito e saudável faria uma bobagem dessas?” pensava com seus botões, “Eu tenho motivos para me matar, levo essa vida miserável, sou tocada por homens frios, ganho tão pouco, fui rejeitada pela família – o cadáver ali deveria ser eu”.
O homem nasce de uma centelha de amor ou de um momento de descuido. Cresce feliz ou com a tristeza na alma. Vira homem ou a vida o devora. Não virar homem no sentido macho da palavra – isso a natureza faz por conta - mas homem no sentido viril. Mulher tem que virar homem também, tem que ser forte, tem que ser mais que uma máquina reprodutora. Ser homem é saber viver e saber ser feliz. É claro que na vida há percalços, ali as duas personagens frente-a-frente tornavam verdade o que acabo de dizer.
A moça ouviu passos no corredor e antes que levantasse alguma suspeita, correu para a janela e com dificuldade desceu para a rua. Machucou o tornozelo e ralou a perna. Lá do segundo andar um grito de horror se espalhou. Ela foi correndo, mancando, o ferimento ardendo. Virou a primeira esquina, foi amansando o coração que estava acelerado. Agora estava um pouco mais tranquila. Entrou num barzinho qualquer, sentou no banco alto e pediu uma dose de cachaça. Tomou num único gole e a vida simplesmente me dizia: “Essa moça era frágil, mas ainda assim forte e indomável. Essa soube virar gente, soube virar homem ”.
sexta-feira, 23 de dezembro de 2011
Confissão
Versos de sudário
Poema de memória
Nem é março ainda
Indisposição
Chinelo quebrou
Mulher - s.f.
Assim eu digo
O pecador
Isto é a palavra
Presta atenção João
Coisas do homem
Eis os sinos
domingo, 11 de dezembro de 2011
A doença do doutor
Assinou a receita e despachou o último paciente do dia. Mirou com pesar os exames que pedira ao jovem que acabara de sair. Pegou-os e olhou atentamente, mais uma vez, como se pudesse estar enganado, mas parecia impossível errar – mesmo sendo um jovem médico. Aquele rapaz que parecia tão cheio de vigor iria morrer em breve e quase nada se poderia fazer. Deitava-se agora sobre o doutor a sombra da inutilidade, ao perceber que não poderia salvar vidas, não poderia salvar todas as vidas. Sentia-se como um engenheiro que vê sua grandiosa obra desabando e pondo sobre os prédios vizinhos uma camada de caliça. Deixou as radiografias de lado. Levou as mãos aos cabelos num gesto de grande frustração. Como não pensou na morte, durante todos esses anos? Como viveu feliz e alheio ao grande momento? Agora se assustava com ela, pois a via de frente – diante de seus olhos, em cada paciente, a grande ceifadora se fazia mais sólida. Grande, invariável, assexuada, indomável.
E eu, a quantos passos da morte estou? – pensou aflito – A cada dia, em cada movimento descuidado, em cada cigarro fumado passivamente, há quantos dias, horas, instantes eu estaria da definitiva morte? Essa pergunta, nunca feita, o inquietava. Olhava para os lados para ver se alguém o via, sentia pavor de pensar – mas era tão bom pensar. Devia tirar o atraso desses pensamentos mortuários, pois sempre estivera ocupado para isso. Quando criança não pensava, criança não podia pensar nisso, mas havia crianças que pensavam – viviam ou morriam isso. Quando chegou à adolescência o máximo de morte que viveu foi uma gripe forte que o impediu de ir à festa de quinze anos da garota que ele tanto gostava – mas não pensou na morte de verdade, o pensamento foi de morte em relação ao sentimento, quando soube que ela dançara com o seu maior rival no colégio. Pois é, ela me partiu o coração, mas eu sobrevivi – pensou com um triunfante tom amargo. Estudou, estudou até quase morrer, mas conseguiu, passou no vestibular numa importante faculdade – estudou por anos e anos. E mesmo tendo estudado com diversos cadáveres, nunca pensou no motivo de eles estarem ali. Enfim, se formara – estava ali no seu consultório branco, limpo, vertiginosamente limpo.
Olhou para as gavetas, abriu a primeira, tirou uma caixinha e dentro dela a aliança devolvida. Mais que uma aliança, o símbolo da sua ruína que ia pouco a pouco se fazendo dentro do seu peito, silenciosamente. A grande verdade é que se ele esquecera a morte, ela não se esquecera dele. Sentiu vontade de chorar e chorou. A lágrima quente escorria livremente e sem nenhum impedimento moral. De que adiantou todos esses anos se não valeu a pena? Se soubesse eu que o destino me reservava tão grande solidão, eu teria tomado outro caminho. Mas a escolha foi minha, arrependimentos para mim não cabem. Ingrata felicidade que não me visita mais, sorriso que não se abre mais em flor giesta. Coração que não palpita mais por olhos, bocas e movimentos sensuais. Falta-me apetite, mesmo com tanta fome – não como, não consigo engolir mais essas obrigações que a vida me oferece. O homem sentiu um sufoco na garganta, levantou-se correndo e foi até o minúsculo banheiro. Pôs pra fora o almoço fabricado, pôs pra fora as injúrias daquela mulher, pôs pra fora o vício, o ócio e tudo que ainda engasgava sua verdade. Olhou-se no espelho e as olheiras fizeram-se vivas como duas vitórias-régias no rio escuro. No seu ser a primogenitura dos tempos, a face de séculos passados, o rosto selvagem e ignorante do ser que se olha pela primeira vez no espelho do homem branco. E percebeu que naquela pele cansada se avultava a doença fatal que o consumia. Depois de se refletir e refletir sobre o seu reflexo foi que seu deu conta. A verdade é que estou doente - mortalmente doente e eu mesmo não percebi. Padecia dessa doença, essa incurável doença que chamamos de vida. De vida mal vivida.
- Caio Augusto Leite
sábado, 10 de dezembro de 2011
Bandeira, liberta meu lirismo
Quero o grito desvairado, o amor doente.
Quero a mão ferida em lepra.
Quero o beijo áspero e urgente.
O abraço tísico do poeta,
o olhar míope do velho.
O mancar subversivo de onze sílabas
na épica camoniana.
Não, eu não sou idiota.
Só um pouco cansado
desse riso brilhante de Colgate.
Eu quero fazer versos
Misturados, inversos.
Verso reverso.
normalidade
a
romper
Quero
aurora.
da
- Caio Augusto Leite