domingo, 11 de dezembro de 2011

A doença do doutor


Assinou a receita e despachou o último paciente do dia. Mirou com pesar os exames que pedira ao jovem que acabara de sair. Pegou-os e olhou atentamente, mais uma vez, como se pudesse estar enganado, mas parecia impossível errar – mesmo sendo um jovem médico. Aquele rapaz que parecia tão cheio de vigor iria morrer em breve e quase nada se poderia fazer. Deitava-se agora sobre o doutor a sombra da inutilidade, ao perceber que não poderia salvar vidas, não poderia salvar todas as vidas. Sentia-se como um engenheiro que vê sua grandiosa obra desabando e pondo sobre os prédios vizinhos uma camada de caliça. Deixou as radiografias de lado. Levou as mãos aos cabelos num gesto de grande frustração. Como não pensou na morte, durante todos esses anos? Como viveu feliz e alheio ao grande momento? Agora se assustava com ela, pois a via de frente – diante de seus olhos, em cada paciente, a grande ceifadora se fazia mais sólida. Grande, invariável, assexuada, indomável.
E eu, a quantos passos da morte estou? – pensou aflito – A cada dia, em cada movimento descuidado, em cada cigarro fumado passivamente, há quantos dias, horas, instantes eu estaria da definitiva morte? Essa pergunta, nunca feita, o inquietava. Olhava para os lados para ver se alguém o via, sentia pavor de pensar – mas era tão bom pensar. Devia tirar o atraso desses pensamentos mortuários, pois sempre estivera ocupado para isso. Quando criança não pensava, criança não podia pensar nisso, mas havia crianças que pensavam – viviam ou morriam isso. Quando chegou à adolescência o máximo de morte que viveu foi uma gripe forte que o impediu de ir à festa de quinze anos da garota que ele tanto gostava – mas não pensou na morte de verdade, o pensamento foi de morte em relação ao sentimento, quando soube que ela dançara com o seu maior rival no colégio. Pois é, ela me partiu o coração, mas eu sobrevivi – pensou com um triunfante tom amargo. Estudou, estudou até quase morrer, mas conseguiu, passou no vestibular numa importante faculdade – estudou por anos e anos. E mesmo tendo estudado com diversos cadáveres, nunca pensou no motivo de eles estarem ali. Enfim, se formara – estava ali no seu consultório branco, limpo, vertiginosamente limpo.
Olhou para as gavetas, abriu a primeira, tirou uma caixinha e dentro dela a aliança devolvida. Mais que uma aliança, o símbolo da sua ruína que ia pouco a pouco se fazendo dentro do seu peito, silenciosamente. A grande verdade é que se ele esquecera a morte, ela não se esquecera dele. Sentiu vontade de chorar e chorou. A lágrima quente escorria livremente e sem nenhum impedimento moral. De que adiantou todos esses anos se não valeu a pena? Se soubesse eu que o destino me reservava tão grande solidão, eu teria tomado outro caminho. Mas a escolha foi minha, arrependimentos para mim não cabem. Ingrata felicidade que não me visita mais, sorriso que não se abre mais em flor giesta. Coração que não palpita mais por olhos, bocas e movimentos sensuais. Falta-me apetite, mesmo com tanta fome – não como, não consigo engolir mais essas obrigações que a vida me oferece. O homem sentiu um sufoco na garganta, levantou-se correndo e foi até o minúsculo banheiro. Pôs pra fora o almoço fabricado, pôs pra fora as injúrias daquela mulher, pôs pra fora o vício, o ócio e tudo que ainda engasgava sua verdade. Olhou-se no espelho e as olheiras fizeram-se vivas como duas vitórias-régias no rio escuro. No seu ser a primogenitura dos tempos, a face de séculos passados, o rosto selvagem e ignorante do ser que se olha pela primeira vez no espelho do homem branco. E percebeu que naquela pele cansada se avultava a doença fatal que o consumia. Depois de se refletir e refletir sobre o seu reflexo foi que seu deu conta. A verdade é que estou doente - mortalmente doente e eu mesmo não percebi. Padecia dessa doença, essa incurável doença que chamamos de vida. De vida mal vivida.


- Caio Augusto Leite

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