terça-feira, 27 de dezembro de 2011

A matriarca

Alguém entrou no quarto escuro. Era a filha mais velha que depois de tantos anos regressava para esse momento único e importante. Vestia um elegante vestido negro coberto de rendas, o cabelo num coque bem apertado, a boca pálida. Os olhos esquadrinhavam o quarto numa falsa curiosidade, como se tentassem evitar o instante em que teriam de encarar o corpo esquálido que expirava na cama bem acolchoada. Foi até a janela, abriu as cortinas e uma nesga de sol adentrou o ambiente iluminando e revelando as rugas profundas sobre o rosto da senhora ali deitada. A filha virou-se lentamente e caminhava como se o chão estivesse coberto de espinhos ou cacos de vidro. Era penoso o caminho, era sua via-crúcis particular. O sapato de salto fazia toque-toque no piso de tacos. Parecia um relógio que contava os minutos ou segundos para o grande momento. Não havia pressa, o padre já dera a extrema unção, todos que podiam já haviam se despedido – as outras filhas, as sobrinhas, os vizinhos próximos. Não havia marido para chorar, era viúva há algum tempo, não havia mais tias e nem tios de nenhum dos lados – era a matriarca absoluta da família.
Chegou enfim, ajoelhou-se na beirada da cama, a moribunda olhou e por alguns momentos não reconheceu o rosto da mulher prostrada no seu lado esquerdo – lado esse que sempre guardou uma lembrança, finalmente voltava a sua primogênita para o lugar de onde nunca deveria ter saído. Para o lado pulsante da vida. As mãos se tocaram – uma enrugada e fria, a outra ainda lisa e cálida. O olhar da velha capturou o olhar da outra. As bocas de vez em quando ameaçavam emitir algum som, mas nenhuma palavra foi dita, cada uma sabia o discurso da outra e era inútil perder tempo agora. Não havia mais mágoas, não havia mais inquéritos, não havia mais dissabores. Nessa hora que antecede o passamento todos os pecados são redimidos. Nem dez minutos transcorreram e então o toque da mão se afrouxou, os olhos perderam o brilho e a boca já não falaria mais nada. A filha levantou-se, ficou ereta e decidida como uma torre negra sob o rigoroso vento do inverno. Então se moveu, tomou todas as providências – vestiu e maquiou o cadáver, preparou o velório, comprou o caixão e pagou todos os gastos do sepultamento. Ocupou a cadeira de espaldar alto que era, em outros tempos, destinada à defunta. Era assim que deveria ser, pois assim vovó dizia: “Rei morto, rei posto”.


- Caio Augusto Leite

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