sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Aquela Senhora

Levantou-se antes da empregada chegar. Com a mão enrugada, as unhas pintadas de vermelho e a velha aliança no dedo. Abriu a cortina de seda. Ainda era madrugada e a escuridão só não era completa devido aos postes de iluminação e aos furtivos raios de sol que começavam a surgir do horizonte além. Ficou um bom tempo mirando o nada, que era sua companhia nesses momentos. Que era essência natural da vida pouca que soprava agora em seu peito.
Desviou o olhar, admirava a praia. A praia que não era mais praia. Que não era mais a praia que era sua. Era outra. Uma nova que construíram com asfalto, com bancos, com cinza. Jamais veria novamente aquela areia refulgir no sol, como fazia nos tempos de mocidade. Jamais o céu se abriria num azul miosótis, a poluição não deixava e até o mar parecia mais bravio em comparação com aquele manso gigante de águas macias.
Perdia-se cada vez mais em tentar reconstruir aquele passado, como se pudesse trazer os filhos, a mãe e o marido. Aquele que se eternizara pra sempre na aliança dourada que agora era parte simbiótica de seu dedo envelhecido. Uma memória duradoura e infeliz dos quarenta e nove anos de casamento que iriam completar. Um sopro de vida, um sopro de adeus. Infarto, e dormia agora o seu Sebastião num jazigo no cemitério do Caju.
Da mãe guardava as jóias de ametista, de rubi e diamante. Do pai a presilha da primeira comunhão incrustada de brilhantes e a caixa de charutos cubanos. Dos três ingratos filhos, guardou as fotos. Guardou os álbuns dos batizados, as roupinhas. Guardou um afeto de mãe que não se apaga. Chama viva, amor que dói, que atrapalha o amor da criação.
Virou-se num movimento de impaciência, contemplava agora seu apartamento no décimo terceiro andar de um prédio antigo do bairro de Copa. Tudo ali conservava a mesma imagem de ontem e de antes de ontem e de cinqüenta anos atrás. Tocou de leve a mobília de mogno gasto, a textura permanente era como um toque de boas vindas. De lascívia, toque de desejo eterno. As cores desbotadas, o papel de parede descolava-se, o tapete tinha alguns vestígios de traças. Precisava mandar ao conserto. “As coisas precisam permanecer intactas” murmurava para si como um mantra oculto. Acreditava que deixando as coisas assim, pudesse impedir a morte, pudesse trazer o que já se foi. Para que quando voltassem trouxessem a alegria de rever tudo como havia sido deixado.
Nada mudava de lugar. E com esse pensamento triunfante de vencer o tempo, caminhou esvoaçante pelo apartamento com uma pétala de dama da noite. A perfumar o local com sua alegria de furta-tempo. Porém houve um erro de cálculo. Bateu com as ancas na mesinha que mantinha as porcelanas de vovó. Um olhar de quase morte, o estampido do estilhaço. E a pequena xícara morria no chão ao alvorecer impertinente que adentrava a janela. “Está tudo acabado” – pensou – “Tanto cuidado, tanto zelo e agora o encanto se quebrou”.
Ouviu a maçaneta da porta girando, esperou ver Cida sua empregada por toda a vida. Mas ao invés disso outra moça adentrava sua morada. “Sou Sandra. Cida não pode vir, está muito doente coitada, me pediu para vir no lugar dela.” Era o início do fim, a vinda de uma estranha confirmava a passagem de tempo que agora se abatia sobre ela. Suas rugas pareciam mais evidentes. E tudo girava, girava, girava. Caiu no tapete em crise, um susto. Uma pancada. A morte. Foi enterrada às 11h30min ao lado do marido.
Invadiram seu apartamento, venderam seus móveis para um antiquário, penhoraram sua aliança. Doaram seus vestidos. Reformaram o local e o venderam para um casal de noivos. O feitiço passara, e agora juntos um casalzinho sem graça admirava o pôr-do-sol. Na praia que era deles, no apartamento que era deles. No tempo que era deles. Para Dona Beatriz apenas uma lembrança. Sem história, sem porcelana e sem cortinas. A noite chega, para toda flor do campo.

Caio A. Leite - 04/02/2011

2 comentários:

  1. Eu já tinha lido, mas não tinha comentado.
    Achei MUITO bem escrito! Isso é que é bixo da Letras de verdade, haha
    Parabéns, e continue escrevendo!

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