segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Reenlaces

Como é difícil libertar-se do outro. Mais difícil ainda quando o outro não sabe que nos prende. É assim que vivo, saltando de corrente em corrente em mãos que não me seguram, mas me prendem. E ela também assim vivia - a dona de casa com seus olhos amansados pelo tempo de aceitação. Dona Joana era tão pequena para a casa que cuidava, tão frágil. Seus cabelos compridos estavam escondidos num pano vermelho – já desbotado. Suas roupas pareciam tão iguais que nem se sabia quando as trocavam, vestidos baratos de feira. Nos pés calosos e cansados havia sandálias de dedo. Na mão enrugada a velha aliança dos tempos em que se pensava em felicidade. Dona Joana vivia sozinha em sua casa, os filhos cresceram e foram pro mundo e o marido simplesmente desapareceu “fugiu com outra” diziam as vizinhas fofoqueiras, mas ela acreditava que ele voltaria um dia.
O que interessa é saber que a pobre senhora levava em seu peito a dor dessa partida, amava tanto, sofria mais ainda. Acordava todos os dias no mesmo horário – até mesmo nos dias de folga - de forma que não se sabia a diferença entre um dia e outro. Pegava o mesmo ônibus com as mesmas pessoas e ia para o trabalho na casa da Madame. Lá ela parecia tentar esquecer os laços desfeitos entre espumas de sabão e desinfetantes. Apenas tentava, não saía de seu coração aquela doída saudade do amor ido. Parece até piegas demais contar essa história – mas é que o rosto de Joana se espelha no rosto de tantas outras e porque não também em tantos outros? Ela nem queria mais um novo afeto, ela só queria esquecer aquele que seu peito corroía tão penosamente como uma tortura chinesa.
Lavava um prato quando pensou ter visto o antigo bem passando pela rua – escorregou o prato para o chão.
- Ai meu deus do céu, se Madame Cráudia ver a lambança que fiz ela vai me botar na rua da amargura. – desesperada a doméstica recolheu os cacos e foi rapidamente colocando num saco de lixo onde a dona não poderia ver. Por sorte era um prato bem comum na casa.
– Acho que ela nem vai sentir farta desse prato, era tão comunzinho... – novamente o sentimento que havia em seu peito estava dando sinais em seu corpo tão cansado, alma era corpo e vice-versa. A Madame chegou e foi até a cozinha dar alguma ordem para a nossa Joana – algo relacionado aos legumes que deveriam ser preparados no almoço. Destino ou outra coisa qualquer fez com que a lata de lixo virasse e os cacos saltassem aos olhos.
- Que porcaria é essa? – perguntou friamente a madame – fazendo seu serviço errado novamente? – Joana já tinha um histórico de vasos, copos e outras coisas quebradas – dessa vez eu não vou tolerar desculpas, eu não quero mais seus serviços Joana.
- Mas senhora... – tentou argumentar inutilmente a pequena personagem.
- Não adianta ficar inventando desculpas, passe no meu escritório para eu acertar seu dia. Não precisa mais vir amanhã. – Joana fez o que lhe foi pedido e com o coração mais quebrado do que o prato pivô da perda do emprego ela se foi mais cedo do que de costume. Agora sua infelicidade estaria completa, sem filhos, sem marido, sem emprego. Ela quase nem existia. Pegou um ônibus para a casa, não o mesmo de todos os dias. Ela sofria e só pensava no marido sumido – mesmo com tantas outras preocupações ela ainda se via amarrada àquele crápula.
Disse que foi por obra do destino ou da sorte sua demissão – eis o motivo. Num daqueles acentos, rostos tão diferentes lhe eram apresentados e um em especial chamou sua atenção – um homem de sua idade mais ou menos olhava na direção da janela. Seu rosto era doce em contraposição com a barba rala e bruta que se instalava sobre seu queixo quadrado. Seus olhos pura constatação do ambiente pós-janela. Joana o absorvia com seu coração – como um papel toalha. Por mais uma ajuda do acaso a pessoa que seguia viagem ao lado do rapaz levantou-se para saltar no próximo ponto. A moça – sim agora estava novamente jovem, a visão do rapaz remoçou seu ser – rapidamente sentou ao lado do Apolo das conduções. Não que fosse tão bonito como um deus, mas para Joana o milagre de sua aparição o tornava tão perfeito como um. Ela nem sabia de deuses gregos, mas sabia de suas belezas – isso estava nela resguardado como informação universal.
Aconchegou-se com cuidado para não demonstrar toda a vontade que abria em seu peito. Foi em toda a viagem pensando naquele que ao seu lado continuava a mirar as paisagens tétricas da cidade. Criava futuros inteiros, intensos – futuros em que sorria novamente. Os olhares se encontraram, o de Joana queria aquilo – o do outro não se sabe e jamais se saberá. Foi rápido até, um breve momento. Talvez ele nem sequer tenha reparado na mulher ao seu lado, talvez ele só quisesse ver se estava perto do seu lugar de destino, pois pouco tempo depois – para desespero sem motivo de Joana – ele pediu com uma voz rouca para passar e então descer.
A moça que agora novamente envelhecia não sabia se o encontraria novamente. Joana seguiu para seu lar, foi pensando no emprego que perdera. Lembrou que podia pedir ajuda a algumas amigas de profissão que conheciam diversas habitações que necessitaria de seus serviços. Chegou onde deveria chegar. Desceu do ônibus e viu o sol indo morar por detrás do Pico do Jaraguá. Caminhando tranquila ela seguiu para sua casinha e a visão do moço de outrora lhe invadiu os pensamentos: Joana poderia não estar mais presa ao marido adúltero, mas estava irremediavelmente presa ao outro que lhe cativara. Estaria presa até novamente se apaixonar por um anônimo e novamente presa estaria – seu coração gostava de ser prisioneiro. O céu de Joana estava claro-escuro, com borrões de sol e treva e somente ela poderia decidir se aquilo era o parir do dia ou o prelúdio da noite.

Caio Augusto Leite

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