quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Vaso novo, vaso velho: flores reticentes.


O rapaz jovem tentava se concentrar no texto que lia na tela luminosa de seu computador. A barba por fazer e os olhos atentos refletiam na luzinha que a máquina emitia para o leitor. A boca fechada e quase seca – passou a língua em volta dos lábios rosados, ajeitou o cabelo e franziu as sobrancelhas. Um barulho de tempestade anunciando-se atrapalhava a leitura. De repente – apenas por uso de expressão – a eletricidade acabou. E no breu imenso ficou o rapaz atônito.
Sem ter nada o que fazer decidiu ir observar da janela a chuva grossa que estava começando. Do décimo segundo andar do prédio ele avistava a grande cidade padecendo ante a força da natureza. Grandes enxurradas levavam o lixo acumulado nas calçadas e entupiam as boca de lobo. Algumas pessoas de guarda-chuva andavam menos apressadas, outras sem nada corriam para procurar abrigo. Uns enfiaram-se nas marquises próximas, outras se apinharam nos botecos que havia na região.
Um helicóptero rondava a enchente que se desenhava leve e pulsante no asfalto “deve ser o Datena” pensou o rapaz ao lembrar-se do programa que era exibido na televisão “será que ainda passa o programa dele?” se deu conta o rapaz que fazia muito tempo que não ligava a televisão do pequeno apartamento: a internet supria todas as suas necessidades e quando estava com tempo livre ia até um dos bares que nesse momento estava perigando encher-se da água barrenta da chuva.
Desviou o olhar da vidraça e percebeu a escuridão que se abatera dentro da habitação – foi atrás de lanternas, velas ou qualquer coisa que o ajudasse a caminhar sem bater os joelhos nas quinas dos móveis. Chegou com algum custo à cozinha e abrindo as gavetas achou um pacote de velas de parafina. Tirou do bolso um isqueiro que carregava por hábito – o fumo já não fazia mais parte dos seus vícios. Foi aos poucos iluminando o ambiente e a luz trêmula da chama dava uma sensação estranha ao dono do apartamento.
E ao piscar os olhos para discernir o que as velas iluminavam foi percebendo coisas que jamais havia visto por ali. Misteriosamente as coisas começaram a mudar – as cadeiras e a mesa de ferro foram ganhando uma cor amarronzada e sem mais nem menos eram feitas de madeira. A geladeira foi ficando menor e azulada, o micro-ondas era uma torradeira. Até um vaso de cristal apareceu em lugar do de plástico, com flores grandes e perfumadas em oposição as artificiais que ali estavam. Correu com a vela na mão – sem entender o risco do fogo em suas mãos – chegou à sala e a Televisão era diferente, com botões grandes e tela arredondada, o computador era uma máquina de escrever e o aparelho de som uma vitrola (os CDs viraram LPs). Não entendia o que estava acontecendo, correu ao quarto a cama era de casal e os móveis ficaram mais antigos também.
Em desespero e já muito aflito corria o moço, corria como que tentando escapar dessa ilusão – um medo percorria o corpo. Sentia frio, sentia sede, sentia o rosto arder - por isso dirigiu-se até o banheiro para poder lavar a face em fogo. Quando seu rosto mirou o espelho sujo, sob a luz da chama, viu no reflexo a moldura exata do olhar paterno: era ele agora a própria imagem do seu genitor. Assustado esmurrou o reflexo e os cacos de vidro afundaram em sua mão – que carregava uma aliança de casamento (aquela que seu pai recebera de sua mãe no altar). Em vertigem entrou na banheira e quando ligou o chuveiro o ralo parecia engoli-lo...
Um trovão mais forte e o rapaz acordou “foi um pesadelo!” pensou quando despertou e viu que a chuva estava mais fraca e a rua completamente alagada. E ao lembrar-se do que se passara foi aos poucos entendendo. A vida passando e levando tantas coisas não conseguia destruir a essência intrínseca a tudo que existe. Tal qual o CD carregava dentro de si a imagem espectral do LP de outrora, o seu corpo (como o de todos os seres) carregava também uma marca interna de sua própria descendência. Passado não poderia ser modificado, por mais que nós tentemos camuflar com plástico, metal e roupas novas – “ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais” o que mudou foi o discurso da máquina, o cheiro da flor e o pote da geleia. Disso ele – tal qual uma mulher há tantos anos – também soube, no primário da noite.

- Caio Augusto Leite

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