domingo, 22 de janeiro de 2012

Essa mulher


É um dia quente de primavera, tudo corre bem pelos quatro cantos da cidade. Os carros engarrafam-se pelas avenidas largas, os senhores de terno fecham negócios, as senhoras de avental limpam as janelas, as vovós regam plantas e no décimo segundo andar do prédio Rita acaba de chegar, foi levar os filhos pra escola. Tranca a porta e fica paralisada no meio da sala, pensa no próximo passo que deve dar, às vezes tinha esses lapsos de memória, como se a vida por instantes perdesse o sentido ou precisasse de um pequeno empurrão para que a engrenagem da rotina voltasse a girar. Dá um pequeno passo e sente a dor ao pisar em algo irregular, algo que não pertence àquele espaço. Olha para o chão e ali um boneco de plástico verde aponta-lhe a arminha mínima, é só um dos brinquedos de guerra que se perdeu do pelotão. Esse soldadinho com certeza é do Antônio - pensa a mãe. Antônio é seu filho do meio. Dentre os três ele é o que menos me dá trabalho. Antônio é forte, decidido, cheio de opinião. E é sempre ele quem comanda as brincadeiras, ele quem coloca Ricardinho na cama quando não estou aqui. Antônio é o que mais se parece com o falecido pai militar. A mulher sorri, pois sabe que Antônio vai ser um verdadeiro homem. Essa certeza faz o peito de Rita se animar, sua missão de mãe não está de todo perdida.
Abana então essas ideias de futuro da cabeça, pega uma vassoura e vai tirando o pó que se acumulou atrás dos móveis de madeira antiga. Limpa com muito esmero cada cantinho, uma casa de família tinha que estar sempre brilhando, sempre perfumada, as flores nos vasos sempre vívidas. Ela como mãe e pai ao mesmo tempo deve cuidar de tudo – do sabão em pó, da conta do condomínio e das lâmpadas que precisavam ser trocadas. É mais do que uma simples dona de casa, é a governanta suprema de um lar. Vive da pensão do marido que morreu antes mesmo do nascimento do último filho. Não era muito, mas com uma boa administração, tudo se resolve. Rita é doce, mas fechada, nunca mais se apaixonou por outro rapaz, vive para a criação e educação dos seus pequenos tesouros. No seu coração ainda mora um luto grande e indestrutível, ela é como aquelas mulheres que amam uma vez só e quando perdem esse amor passam a viver apenas das lembranças felizes. Felicidade, palavra tão esquecida naquele rosto cansado, se alguém pergunta ela diz que gosta de viver assim, mas sabe, no fundo do seu ser ela admite que é triste, que é só, que apenas vive – sobrevive num mundo frio de pedra. Ela gosta mesmo é da pequena cidade do interior onde nasceu, onde viveu grande parte da vida, onde amou com toda a delicadeza e ferocidade o primeiro e único homem da sua pequena, e talvez insignificante, existência. Sente uma falta constante do cheiro de mato molhado, do leite tirado na hora, do cantar do galo no meio da madrugada - como ela é bucólica, seu corpo alto e magro é uma composição árcade – poema de flor ao som do zunzum das abelhas. Mas ela continua seus trabalhos domésticos e às vezes algum passarinho canta no beiral da janela e esse breve acontecimento é suficiente para apaziguar a saudade da distante natureza.
As horas correm. Rita adiantou o almoço e está agora ao lado da máquina de lavar na espera que ela termine de limpar as roupas. De repente o aparelho para suas funções, Rita abre a tampa e vai tirando as roupas, pega uma camisa de Roberto – seu filho maior – e percebe como são estreitos os ombros do jovem rapaz. Ah, Roberto é tão fraco, tão frágil – divaga a mãe – sempre só, sempre tímido, sempre com medo de sair pro mundo. Como ele sofre nessa sociedade cruel, como ele tem dificuldade em manter laços de amizade, como ele é pequeno perto de toda animosidade das pessoas que tentam a todo custo passar a perna nele. A culpa não é dele, ninguém tem culpa de nascer com um coração maior que o peito, um coração que quer abrigar a tudo e a todos, não há dúvidas que o resultado de tanto amor pra dar e sem ninguém pra receber é essa angústia que vive estampada nos olhos tão aflitos do meu primogênito. Rita sabe ler os olhos de Roberto, é fácil, pois é o mesmo que está inscrito nos olhos dela. Meu filho, sem querer, nasceu igual a mim – nos olhos e nas palavras doces e bem escolhidas. No fim das contas a culpada sou eu por passar para seus genes essa herança maldita e falha. Com Roberto eu fracasso a cada dia, como fracassei comigo mesma. A Rita se irrita e mais uma vez tenta abanar esses pensamentos de sua mente. Agora ela estende as roupas e por enquanto livra-se dessas ideias estranhas. Então o silêncio é rompido pelo telefone, é sua sogra, diz que vai buscar as crianças para almoçar com ela – Rita concorda, faz menos comida e almoça sozinha.
Entardece e o sol quase toca o horizonte e a mulher deixa o ócio dominar seu corpo, senta no sofá e assiste a novela que não acompanha, de modo que não entende nada do que se passa na vida daquelas personagens ocas e vazias. Até pensa em mudar de canal, mas o controle remoto está longe do seu alcance e ela quer pecar a preguiça, está bem acomodada ali. E nos seus devaneios Ricardo emerge com grande energia e vitalidade. Ricardo não é parecido comigo e nem com o pai – o menino ainda é tão pequeno, mas em seus poucos anos de vida já expõe seu gênio forte, sua espetacular opinião sobre as coisas e suas mil perguntas sobre tudo. E não era só isso, Ricardo me traz a novidade, a vitalidade, o que não cabe nem em Antônio ou Roberto – pensa a mulher largada no sofá.
E anoitece, os meninos chegam e postos cada qual na sua cadeira esperam o jantar. A comida é servida. Antônio aguarda, Roberto de cabeça baixa e Ricardo não espera ordem alguma, logo começa a comer. Rita observa com atenção seus três filhos, seus três tempos de existência: Antônio, Roberto e Ricardo – seu passado, presente e futuro. E como se soubesse que Antônio seria feliz e que Roberto sofreria, já de Ricardo nada sabia. Põe os meninos para dormir, arruma agora a cozinha e a noite avançada traz maiores reflexões, na rádio de sucessos populares Elis canta e enquanto Rita se prepara para dormir, finalmente entende que aquele menino de aparência tão frágil e de riso contido é tudo o que ela precisa pra continuar vivendo. Ricardo é seu grande e único mistério. A lua surge, Rita dorme e alguma voz etérea paira sobre o ar dizendo: as mães sempre sabem, mesmo quando nada sabem. Talvez fosse Deus, talvez fosse só o vento na janela do décimo segundo andar dessa mulher.


- Caio Augusto Leite

2 comentários:

  1. eu adoraria namorar alguém como você...

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  2. Muito boa Narração e bem colocado as comparações. Parabéns Amigo!

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