segunda-feira, 14 de novembro de 2011

As três meninas


Há muito abandonei meu lar. A casa em que passei alguns momentos de infância. Ali construí castelos, montei festinhas, tomei chá com ursos, beijei príncipes vindos de cavalo branco. Ali naquele pedaço de quintal eu vencia a solidão que me angustiava e me prendia. Sabia ser feliz – sabia muito ser feliz. Mas por motivos irrelevantes para a criança que eu era, me vi dando adeus aos sonhos que ali plantei bem do lado da laranjeira frondosa. Fui-me então, em meio a lágrimas e corações partidos, para o desconhecido. Cheguei ao novo lar, distante, apertado, pequeno para conter o meu querer. Não cabia no novo espaço todos os sonhos e nem todas as esperanças de uma criança tão inventiva como eu. Expeli de mim coisas que eu não sabia de onde vinham, mas que saíam do mais íntimo de mim - foi a minha primeira partida, puramente física.
Há pouco tempo passei pela antiga moradia e não havia mais nada. Pelo quintal tão grande, para a pequena criança de outrora, foram erguidas paredes de concreto frio. As árvores foram arrancadas, junto com meus sonhos mais puros e inocentes. Agora ali se encontravam dois grandes sobrados – era a natureza virando dinheiro – era o passado virando futuro. Meu coração doeu, minhas mãos tremeram, minha voz embargou. Ninguém tinha o direito de podar minhas memórias dessa maneira. Ninguém tinha o direito de quebrar meu coração dessa maneira. Quem ele pensa que é? Era preciso se reerguer dessa traição amarga – foi a minha segunda partida, dessa vez puramente emocional.
Hoje deixei minha casa, sob falsos pretextos, para plantar novos sonhos em terras tão distantes. Era eu querendo ser criança novamente, querendo brincar de ser feliz, brincar de conto de fadas, brincar de amar. Era eu querendo suprir as faltas que tive – Freud explica. Bati a porta de casa e fui-me, corri pelas ruas esburacadas, tomei chuva, tomei sorvete, escorreguei num barranco coberto de lama, era bom ser criança novamente. Fui criança nesse instante, pois era a última vez que poderia ser. Sequei o corpo, lavei a alma, corri de encontro à boca feliz que me engolia e me fazia outra. No abraço, no toque, no beijo molhado e então a criança deixou o medo. O tempo passou – girou num cata-vento. Era o corpo alheio um novo lar que se formava. E ali poderia plantar quantos sonhos quisesse, o solo era fértil. Ali venceria quantas guerras fossem declaradas. Essa foi minha terceira partida – de menina para mulher, deixei a boneca e fui pra vida.

- Caio Augusto Leite

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